choices, choices

Apercebi-me no outro dia (qual descoberta da pólvora) que o meu dia é cheio de dilemas. Sempre ouvi dizer que a vida é feita de escolhas, claro, mas nunca tinha pensado mesmo nas mais rídiculas escolhas que tenho que fazer todos os dias. O que me leva a pensar na quantidade de universos alternativos que poderiam existir à volta das hipóteses que não segui.

Logo quando o despertador toca começam os dilemas: acordar logo ou carregar no repetir e acordar passados cinco minutos? Em regra, ganha a segunda opção. Again and again and again. Dilema seguinte: ir ou não ir ao ginásio? Depende sempre das horas a que consigo acordar, do trabalho planeado para esse dia. Se não vou, o dilema seguinte é ver os e-mails enquanto tomo o pequeno-almoço, e perder mais tempo, ou tomar o dito na cozinha, a correr? Mesmo a definição dos ingredientes do pequeno-almoço é outro dilema: só café; café,  iogurte e cereais, ou vou à padaria e tomo um verdadeiro pequeno-almoço? Normalmente ganha o que for mais rápido. Se vejo os e-mails do escritório, outro dilema: respondo logo ou espero até chegar ao escritório? 
Depois a escolha da roupa para esse dia. Este é dos dilemas cuja decisão é mais difícil. Como sou friorenta e tenho um ar de miúda, o esforço máximo é encontrar roupa que sirva vários objectivos diferentes: manter-me quente no escritório enquanto enfrento os diversos ares condicionados dos colegas e, se estamos no verão ou na primavera, essa mesma roupa tem que ser leve o suficiente para eu não assar na rua, ao mesmo tempo que tem que ser séria q.b. para um dia de escritório sem parecer que roubei o fato da minha mãe. 
Depois o cabelo: liso ou aos caracóis, apanhado ou solto, rabo de cavalo ou ganchos, lavo ou aguenta mais um dia, se lavo, seco ou não?
Depois a cara: pinto ou não? Normalmente não...
A seguir o que vai ser o meu almoço? Levo o resto do jantar e almoço no escritório, ou vou almoçar fora? Depende do que foi o jantar e do estado das finanças. Mas decidir isto de manhã dá-me sempre uma volta ao estômago...

E estes são os dilemas que me coloco mesmo antes de sair de casa. 
Não é de admirar que quando, ao fim do dia, o meu amor me pergunta "o que queres jantar" a resposta seja sempre "o que tu quiseres".

finalmente!

 Daqui: Guardian
 Rescaldo de primeiro dia de férias: leitura completa de um livro com 550 páginas. I'm back!

outro

A minha é uma história estranha. E eu sou uma coisa estranha para a contar. Mas ninguém restou que a contasse por mim.
Fui concebido numa sala de reuniões branca e luminosa, desenhos baseados no lucro que poderia trazer aos meus criadores, e não baseado no que poderia acrescentar à vida de quem me comprasse. Mas isso seria um raciocínio raro de quem sabe apenas conceber na base dos cifrões.
Mas de uma linha de montagem automatizada e esterilizada nasci, e por motivos mais emocionais que lucrativos fui levado para casa do meu dono.
Este meu dono era uma pessoa absolutamente normal, com uma vida verdadeiramente real, sem qualquer pretensão a herói ou vilão da vida alheia, nem sequer da sua. Levava-o para o escritório todos os dias, e no caminho deixava os filhos no colégio, e mais tarde no liceu. Era lavado religiosamente todos os meses, porque no parque onde passava as minhas noites havia árvores e pássaros que me atingiam por gozo, ou assim me parecia, e por vezes chovia copiosamente.
A minha seria uma história absolutamente comum se não tivesse sido escolhido para receber um raro encargo. Um dia o meu dono pegou-me a horas tardias da noite, o que desde logo não era normal. Ao invés de se sentar ao volante, ajeitar o espelho enquanto os filhos se encaixavam nas legais cadeirinhas, abriu a porta do banco de trás, ficando apoiando um braço no meu tecto a olhar para dentro. Não parecia o meu dono, parecia outra pessoa. Mas as chaves eram do meu dono, e as mãos também. Reconheceria estas mãos em qualquer parte.
Mais decidido, pegou num embrulho que trazia arrastado e, a custo, empurrou-o para cima do meu banco. De imediato um cheiro a cobre podre percorreu os meus tecidos e ventilações, infiltrando-se no motor até chegar às profundezas dos meus pneus.
O meu dono atirou a porta de trás violentamente, outro acto invulgar para este homem tão normal. Lentamente dirigiu-se ao seu banco e abriu a porta. Sentou-se e ficou uns minutos a olhar para o meu volante, Enfiou a chave na ignição e instintivamente tentei acordar. A custo, porque aquele cheiro me agoniara a injecção e envenenara o combustível. Consegui obedecer, mas aos soluços para não morrer de vez tal era a minha náusea.
De repente senti uma carícia no meu banco de trás. Reconheci a mão da minha dona, ou melhor, da dona do meu dono. Reconheceria aquelas mãos em qualquer lado, suaves e pequeninas. Morri de vez, não conseguia avançar, não entendia que cheiro nauseabundo era aquele que provinha de tão amadas mãos. Solucei ainda uma vez mais para parar de vez.
O meu dono, talvez pressentindo a minha agonia, ou talvez partilhando desta invulgar agonia conjunta, desligou-me, e chovendo copiosamente em cima do meu volante, baixinho murmurou desculpa, e atirou qualquer coisa estranha contra a própria cabeça, que voou descontrolada até ao meu vidro, onde se desfez numa enxurrada de cheiro a cobre podre encarnado.
Como disse, a minha é uma história estranha, e mais estranho é ser eu a contá-la.

porque fui a um casamento

Bem, vamos lá falar honestamente.
Em pleno ano 2010, o que é que é isto do casamento?

No tempo das nossas avós, o casamento era uma etapa da vida, tão obviamente certa como nascer, crescer ou morrer. As pessoas nasciam, cresciam, começavam a desenvolver capacidades sociais, inseriam-se numa comunidade, conheciam outras pessoas, e de entre essas mesmas pessoas, escolhiam com quem casavam e tinham filhos.
Depois educavam os filhos, os filhos começavam a ser eles mesmos seres sociais escolhiam alguém para casa e ter filhos próprios. E o ciclo era previsível e lógico.
Depois vieram as revoluções sociais. Pouco ou nada sentidos em Portugal na altura em que aconteciam, os movimentos liderados pelos baby boomers tiveram efeitos colaterais no nosso País à beira mar plantado apenas depois da nossa própria revolução, desta feita a dos cravos.
E nesse momento começaram as mudanças. Que foram muitas e, dependendo com quem se fala, boas ou más.
Vieram os divórcios em massa, revelações escandalosas das práticas extra conjugais das anteriores ínclitas gerações, surgiram as famílias alternativas compostas pelos meus, os teus e os nossos, as uniões de facto, as mães solteiras, as mães adolescentes, as interrupções voluntárias de gravidez, os planeamentos familiares, as curtes, os one night stands, os solteiros/as inveterados por escolha, os casais sem filhos por escolha, as mulheres em maioria nas universidades, a média de 1,5 filhos por mulher, e recentemente, o casamento de pessoas do mesmo sexo. Se em 1975 houve em Portugal registo de 103.125 casamentos, em 1990 houve 71.654 e em 2008 43.228, dos quais 55,6% foram não católicos. Nesse mesmo ano ocorreram 26.110 divórcios, contra 1.552 em 1975.
Em 2010, como estamos nós? Terá o casamento perdido o seu histórico sentido? Ou terá adquirido outro?
Depende com quem falarmos. O que não é de todo mau, a diversidade tem vindo a abrir-nos horizontes que, admitamos, tínhamos bem fechados. Mesmo que essa abertura seja lenta, suave, e por vezes, imperceptível a olho nu.
Se perguntarmos a um católico praticante o que é o casamento, rapidamente nos dirá que o casamento é um dos sacramentos católicos, sacramento esse através do qual a união de vida de duas pessoas é consagrada perante Deus, e o seu compromisso se torna sacrossanto exactamente por tal consagração, e como tal, “até que a morte os separe”.
Por outro lado, se estivermos a falar com um licenciado em Direito, conseguirá explicar-nos que o casamento é um contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida. Esta é a posição oficial do Estado Português sobre o casamento – um contrato, equivalente a uma escritura pública de compra de um apartamento, por exemplo.
Se por outro lado falarmos com um agnóstico não conhecedor das práticas ou teorias legais, se calhar o tema complica-se, e as respostas variarão conforme estivermos perante uma mulher ou um homem, ou ainda conforme o nível económico, cultural, social ou académico do nosso interlocutor.
De facto, se despojarmos o casamento de todas as noções religiosas, ele acaba por ser apenas consubstanciado por uma troca de papéis, ainda para mais reversível, cujo valor só pode ser baseado em emoções, nada mais.
Mas quando duas pessoas escolhem viver juntas, essas emoções base já existem com certeza: se não são religiosos e não acreditam que o casamento seja uma ligação à partida para sempre, qual o valor que tem o casamento? Uma festa? Ou uma concessão a escrutínios sócio familiares que ainda persistem na nossa sociedade?
Sim e não, dependendo das pessoas, porque obviamente essas mesmas emoções base são conceptualmente subjectivas. A única conclusão certa é que o casamento deixou de ter valor consensual e universal na sociedade Portuguesa de hoje, e passou a ser uma instituição adaptável a cada um, cuja escolha é um tema íntimo do casal, e as suas razões inerentemente subjectivas.

Para mim? É uma forma socialmente aceitável de fazer amor em público: através da festa, das alianças e da conjugação dos apelidos dos noivos, materializa-se em público o amor que os noivos sentem um pelo outro. Também me encanta a ideia de uma pertença de duas pessoas àquela empresa comum, não um ao outro, mas aos dois, ao casal.
Mas eu sou uma romântica incurável. Prática, mas romântica. E confesso que a ideia de ser princesa por um dia me delicia...

porque o dinheiro não compra a felicidade, mas às vezes parece ajudar a pagar as prestações: o que faria se fosse bilionária*:

Nunca mais cozinhava sob pressão.
Nunca mais engomava.
Nunca mais passava dias em modo vileda.
Nunca mais acordava com despertador.
Nunca mais passava mais de um mês no mesmo sítio.
Teria alguém que me fizesse o pequeno-almoço todos os dias.
Nunca mais releria livros por necessidade, apenas por prazer.
Nunca mais estudaria o que não me dá gozo.
Faria uma festa todos os meses, ou todas as semanas... Ou todos os dias, o que me apetecesse.
Criaria uma associação para ajudar jovens a estudar o que queriam, a trabalhar no que gostam e a constituir família quando e como quisessem.
Nunca mais guiava por necessidade.
Nunca mais contaria tostões para o café.
Seria mais proactiva a defender aquilo em que acredito.
Não deixaria ninguém que amo passar dificuldades. Acho que também não deixaria aqueles de quem gosto passar dificuldades.
Passaria a comprar presentes para toda a gente todos os dias.

Se calhar dormiria mais sossegada. Mas não seria mais feliz por isso, creio eu. Apenas menos preocupada.

* de notar o requinte de malvadez: não é milionária, é bilionária!

just another manic monday

Hei-de sempre pensar que o ser humano foi feito para mais qualquer coisa do que apenas acordar com despertador, fechar-se num cubículo com ar ambiente pré fabricado, sair ao fim do dia para vir para casa comer e dormir para no dia a seguir acordar com despertador e fazer tudo outra vez, enquanto sonha com as férias, o fim de semana, o euro milhões ou simplesmente o fim do mês.
Hei-de sempre pensar assim. Sobretudo à segunda feira de manhã.

inspiras-me sempre

E quando abri os olhos só vi azul. Um azul lindo, translúcido, azul reflexo de água, cristalino. Mas o reflexo vinha da minha pele, de mim como se eu fosse toda azul por dentro, como se ao invés de sangue e entranhas fosse toda feita de transparências azuis.
E vi que onde a minha pele tocava a tua o azul se tornava luz clara e brilhante, e a cada respiração nossa a luz invadia o azul tornando-nos luz.
Levantei-me. O azul diminuiu mas acompanhava-me nas deambulações matinais, preparativos de dias corridos. Mas cada vez que olhava para ti o azul emergia dos meus poros, reflexo.
Durante o dia o azul foi diminuindo, devagar, entre telefonemas e problemas e questionários e dúvidas e soluções encontradas na pressão da maratona do meu quotidiano. Mas cada vez que olhava para a tua fotografia a minha ligação visceral com este azul fortalecia-se um pouco mais.
Ao almoço as certezas alheias levaram-me o azul quase todo. Foi-me arrancado o azul como se o meu azul fosse cocaína de terceiros. Ao ver escapar-me o meu azul vi crescer as luzes dos egos de outros. Cordão umbilical parasitário, não me conseguia libertar desta exploração não solicitada de mim.
Na casa de banho olhei ao espelho e o azul cresceu de novo. Fechei os olhos, vi a minha imagem e vi o azul a nascer de mim mais e mais forte, maior, sem fim. Quando abri os olhos a minha imagem imaginária respondeu-me com um sorriso. E pensei que extraordinário, estas são as minhas pernas, as minhas mãos. Tudo isto é lindo e é meu e de mais ninguém. Este sorriso é meu, estes olhos são os meus, claros e meus.
Quando cheguei a casa e olhei para ti vi o teu azul a crescer de encontro ao meu.
Num abraço que me pareceu um retorno antigo, fundimos-nos numa luz clara que nos inundou os azuis e explodiu à nossa volta em mil outras cores.

Dúvida


 
Sou a única pessoa a achar que ouvir músicas deprimentes, ou ver filmes pseudo neuróticos, é uma auto manipulação do nosso estado de espírito? Catártico, para mim, é dar gritos e partir uns quantos bibelots dispensáveis (como canecas...), e não chorar agarrada à almofada a ouvir uma música que foi mesmo escrita para mim agora (mentira, ou foi escrita por um batalhão de pessoas pagas para nos entreter com dores alheias, ou então por uns senhores com dores próprias que não as nossas).
Ou melhor, o que nasceu primeiro; a neura ou a repetição insistente de baladas tão animadoras como as dos Portishead, Jeff Buckley ou Skunk Anansie (Nick Hornby rules, btw)?
P.S.: note-se que até gosto dos senhores 

privo di titolo *

Quando era nova acordava todos os dias às seis da manhã. Quando era nova…
Quando tinha 25 anos acordava todos os dias às seis da manhã. Às seis e meia já estava na rua, pequeno-almoço tomado, cara lavada. Às sete entrava no ginásio, de onde saía pontualmente às oito e meia, para ir para o escritório. Onde entrava sem falta às nove todos os dias.
Almoçava à uma e meia, uma salada trazida de casa, comida apressadamente à frente do computador. Saía do escritório às oito da noite, ia ao supermercado buscar sopa pré fabricada e a salada do almoço seguinte.
Às dez da noite desligava o computador, limpava a cara, punha o creme dos olhos, o da cara, lavava os dentes, passava o fio dental, escovava o cabelo, punha creme nas mãos e nas pernas, óleo nos pés.
E ia dormir.
No dia a seguir levantava-me às seis da manhã.
Hoje já não posso dizer que sou nova. Hoje tenho sessenta anos. Tenho o corpo de uma menina de quarenta, e a minha cara não denuncia o passar dos anos.
E as minhas memórias de juventude nada mais são que horários escrupulosamente cumpridos onde me enclausurei sozinha. 

* Homenagem pequenina a Andrea Camilleri, sem pretensões de igualar a sua mestria, claro. 

e agora dava em crítica literária?

Fiz uma coisa que não faço há anos. Li um livro numa semana, sem ser durante as férias. E não era releitura de um livro já lido. Era um livro novo, acabadinho de comprar, com a lombada ainda virgem. E percebi que tinha muitas saudades de ler. Livros novos.
O Generation X, maravilhosamente escrito e pensado, pareceu-me um exemplo perfeito de uma catarse de histórias pensadas durante anos. Doulgas Coupland parece trabalhar as palavras e as frases com um cuidado extremo, o que acaba por fazer com que o livro pareça não pensado + escrito mas originado directamente de emoções e associação livre de palavras.
Escrita rápida, moderna e despretensiosa, leva-me a entrar num estado de permanente ironia perante as absurdas tarefas mundanas da gente comum. E lembrou-me por que razão adoro a escrita dele: prática, assume os acontecimentos chave das histórias como panos de fundo para o mais relevante sobressair – o que sentem/pensam as personagens. Como os acontecimentos afectam as suas vidas. Como vêem o mundo para além do óbvio. E como ele o sabe descrever com originalidade. E tudo isso me ocorre não pelas histórias descritas, mas pela construção frásica, pelo estilo de cada personagem, fugitivos de cosmopolitas doutrinas de sucesso a todo o custo.
Além disso, adoro qualquer livro que me faz rir sozinha no eléctrico e me obriga a ler em qualquer minuto vazio que tenha durante o dia.
Mas isto é só a minha opinião não académica e vale o que vale. Mas, resumindo, li e recomendo.
Agora estou a ler Paul Auster, que espero me faça sentir/pensar tanto como Douglas Coupland. So far so good!

if only I had read it sooner...


Diseases for Kisses (Hyperkarma)
: A deeply rooted belief that punishment will somehow always be greater than the crime: ozone holes for littering.
Successophobia: the fear that if one is successful, then one's personal needs will be forgotten and one will no longer have one's childish needs catered for.
Mid twenties breakdown: a period of mental collapse occurring in one's twenties, often by an inability to function outside of school or structured environments coupled with the realization of one's essential aloneness in the world. Often marks induction into the ritual of pharmaceutical usage.
Overboarding: overcompensating for fears about the future by plunging headlong into a job or lifestyle seemingly unrelated to one's previous life interests; i.e., Amway sales, aerobics, the Republican party, a career in law, cults, Mcjobs...
Recurving: leaving one job to take another that pays less but places one back into the learning curve.

what happens after you say "I do"?

Este é o mote do novo filme de Carrie Bradshaw. E este é uma dúvida que assalta milhões de pessoas diariamente, apenas comparável aos inquestionáveis mistérios do afterlife.

De todas as pessoas casadas que conhece, quantas lhe responderão honestamente sobre o que acontece uma vez dado o nó? Eu não conheço nenhuma... E isto nada quer dizer sobre o grau de intimidade que tenho com as minhas amigas casadas, mas muito que ver com o tabu que é falar sobre a vida a dois. Ainda.

Admitamos, vivemos num país que até há bem pouco tempo se definia como Orgulhosamente Só. E esta espécie de espírito isolacionista foi incutido em cada um de nós, povo outrora aventureiro mas que hoje parece ver a maior aventura da vida como escolher o que jantar no restaurante Tailandês da moda, sem acabar a comer fígados de porco panados.

Que entre marido e mulher não se mete a colher já sabemos. Que ninguém quer contar as suas desventuras amorosas para não parecer fraco, também. Mas porque é que não se espalham as boas energias que uma vida a dois pode gerar? Talvez para não estragar, ou para não passar a vergonha de também admitir que se acabar vai doer, ou até para não parecer exibicionista. Ou seja, por um misto de proteccionismo e pessimismo sobre o qual, certamente, não reflectimos.

De experiência de vida a dois tenho pouca. Poucos são os meus anos também. Mas tenho a certeza de uma coisa: por nunca ter ouvido alguém, meu semelhante, dizer que partilhar uma vida com outra pessoa é óptimo e por nunca ter ouvido relatos de tal felicidade em primeira mão, acabei a acreditar que a vida a dois era, inevitavelmente, um constante compromisso em que facilmente acabamos a perder mais do que ganhamos. Uma luta constante.

Depois vem a parte mais difícil. Sabendo que é esta a minha perspectiva de relacionamento humano, quantas das minhas relações minei desde o princípio por enquadrar atitudes, comportamentos e até mesmo pessoas em formatos pré concebidos de relação? Em quantas batalhas entrei por as provocar? E o que escondi atrás dessas guerras frias? Enfim, quanto de mim consegui passar pelos muros de preconceitos alheios?

É que sem estas barricadas começo a perceber que a vida a dois pode ser, mesmo, uma espécie de happy ever after. Pelo menos um dia de cada vez.

P.S. reparo que este blog está a focar muito relações amorosas e afins. Devem ser os ares de Maio...

pelo gozo

Zé Manuel chegou ao local do crime atrasado, como de costume. Com ar indiferente ao que o rodeava pôs a mão no bolso, com perícia desviando o sobretudo para o lado. Apagou o cigarro que ainda trazia na outra mão e entrou na casa onde tinha ocorrido o homicídio. Ao entrar, pensou que os homicídios eram sempre em casas como estas, anónimas, iguais umas às outras.
Dirigiu-se com passo sábio para a cozinha onde à sua espera se encontrava o corpo, já gelado e hirto dos rigores habituais. Esta era uma cozinha luminosa, toda em azulejos brancos e amarelos, de bom gosto, como aquela que a sua mulher, Maria, lhe andava a pedir há anos, mas que ultrapassava em muito o seu magro ordenado de funcionário público.
Tudo arrumado, tudo no sítio, nada indicava ser este mais um crime passional. Não havia dedadas de sangue em lado nenhum, nem se vislumbrava sequer uma vaga mancha da gordura costumeira em qualquer cozinha frequentemente utilizada. Parecia ter sido algo bem planeado. “Boa”, pensou ele animado, “este vai-me dar gozo”.
Cumprimentou com vigorosos “passou bem” o médico legista e o assistente que já se encontravam na cozinha, e perguntou-lhes se já tinham alguma conclusão quanto à hora em que o indivíduo tinha morrido. Às duas da manhã, laconicamente responderam em uníssono.
Ok. Agora vamos ver quem és. Com mestria colocou as finas luvas de látex, tirou o sobretudo e o casaco do fato, pondo ambos em cima de uma cadeira, e atirou a gravata para trás das costas, que nódoas de sangue são impossíveis de tirar e esta era a sua gravata boa. Ajoelhou-se ao lado do corpo, com cuidado para não pisar nada que pudesse ser relevante no decurso das investigações. O cadáver estava deitado de lado, quase em posição fetal. Parecia até confortável, como se estivesse só a descansar, não fosse o pormenor de estar em cima do frio linóleo. Devagar e com cuidado virou o corpo para ver a cara da vítima e teve um choque. Reconheceu-o de imediato. Era o Vasco.
Conhecera-o através da Maria num jantar, há duas semanas. Zé Manuel e Maria tinham ido jantar fora com o Vasco e com a mulher dele, que se bem se recordava chamava-se Teresa. Vasco era gestor de uma empresa da moda, bem parecido e bem-falante, e tinha ido ao jantar com ar descontraído de quem não tem problemas em escolher a roupa adequada para cada situação. Maria por sua vez tinha-o conhecido no ginásio que ambos frequentavam religiosamente.
Bolas, agora ia ter que se escusar da investigação. E ele que andava ultimamente ocupado apenas com míseras queixas de injúrias e crimezinhos do género… Este homicídio sempre seria um bom desafio. Se calhar não ia dizer nada já, ia aproveitar só mais um bocadinho até dizer que se tinha que escusar.
Levantou-se rapidamente e voltou ao hall de entrada da casa, onde estavam em cima da mesa de apoio, como seria de esperar, as chaves de casa e o telemóvel de Vasco. Em voz alta perguntou se alguém tinha avisado o parente mais próximo e uma voz longínqua respondeu que sim, a mulher dele estava a caminho do aeroporto. Era a sua oportunidade. Quando ela chegasse, olharia para ela e fingiria que só se tinha apercebido nesse momento que conhecia a vítima.
Rapidamente pegou no telemóvel do Vasco e foi verificar as últimas chamadas recebidas. De repente o seu coração parou. O último número marcado era o de sua casa... Sem perceber bem o que fazia ligou para o voice mail, tentando manter uma postura normal com a ajuda discreta da mesa de apoio, enquanto se debatia contra invisíveis murros nos pulmões que não o deixavam respirar.
Sem acreditar no que ouvia, percebeu que se estava a ouvir a si mesmo, numa versão metálica da sua voz, a ameaçar de morte a vítima se ele não acabasse o romance que, pelos vistos, estava a ter com a Maria. Agarrou-se à mesa da entrada com força para acabar com as tonturas que o rodeavam tortuosamente, mas não conseguiu, e acabou por cair no chão sem forças.
Sobressaltado acordou. Eram duas da manhã. Olhou à volta, estava na sua cama. Era funcionário público, é verdade, mas de uma repartição das finanças, não da polícia judiciária. Mas era mesmo casado com a Maria.
E tinha mesmo que arranjar coragem para lhe pedir para ir um bocadinho menos ao ginásio, a ver se ele voltava a dormir decentemente...

velhos medos

Lembrei-me hoje de quando tinha mais ou menos 11 ou 12 anos, e atravessava de vez em quando o Jardim da Estrela para ir para o liceu.
Uma vez no Verão, preparava-me para mergulhar de cabeça num dos bebedouros do jardim quando uma amiga desses tempos me avisou aflita que se dizia que quem bebesse dessa água nunca teria filhos. Acto contínuo, bebi mais água do que aquela que queria. Isto porque naqueles tempos eu declarava a quem me quisesse ouvir que nunca iria ter filhos, e casar... dificilmente.
Hoje, passados mais de 15 anos, não é bem assim. Hoje declaro sem medos que sim, gostava de ter filhos um dia e casar também.
Medos porquê?
Porque sofri sucessivas e esquizofrénicas lavagens cerebrais. Sendo da primeira geração nascida depois do 25 de Abril, percebi que das duas uma: ou seguimos a doutrina segundo a qual o casamento e os filhos são etapas lógicas e inevitáveis da vida de qualquer pessoa, tal como os sacramentos católicos, ou bem que seguimos teses mais revolucionárias que defendem de punho em riste que o casamento é praticamente um acto do demónio, a fugir a sete pés, e os filhos quase os nossos carcereiros.
No meio disto, cresci entre noções BCBG que me levavam a sonhar com vestidos brancos imaculados, dias de felicidade eterna junto de uma santa alma e nenucos adoráveis, e rebeliões organizadas em família em que se discutiam todas as formas como o casamento acabava com todas e quaisquer pretensões de liberdade de uma mulher.
Quando cheguei à idade do armário, tal era a confusão nos meus pobres lobos cerebrais, que tinha vergonha de dizer que sim senhor, gostaria muito de ser Barbie por um dia e ter ao meu lado um Ken, e depois procriar imensos barriguitas.
Já adulta, cheguei à conclusão que o mais difícil para mim era admitir que tinha um lado feminino menos intelectual, mais sonhador e romântico. E que sim, se (re)encontrasse a pessoa certa, talvez gostasse de casar e ter filhos.
Agora fico na dúvida: serei só eu, ou quantas mulheres têm hoje medo de dizer que ainda gostavam de casar e ter muitos bebés como nas novelas, só porque sim?

vida triste com final feliz

Saiu de casa depois do almoço comido cerimoniosamente à mesa da casa de jantar, enquanto desfolhava uma revista de 1960, ano em que se tinha casado com aquele que foi o seu grande e único amor. Morto na guerra colonial, não lhe tinha dado tempo de ser sua mulher ou mãe dos seus filhos. Deste casamento apressadamente acabado restou-lhe o luto pesado usado até hoje com o orgulho de quem não quer esquecer a felicidade que um dia sentiu.

Dirigiu-se em passos falsos para o café da esquina, onde já lhe conheciam os hábitos, e sentou-se na primeira mesa da porta. Café escuro mas bem frequentado, de funcionários simpáticos e clientes solitários, com paredes preenchidas de caixas de chocolates empoeiradas que exibiam marcas já desaparecidas há muito.

Pediu o habitual, o café, o copo de água e o pastel de nata, e assim se iniciou a sua rotina da tarde. Cada cliente que entrava era perscrutado de alto a baixo e, se não reprovasse em tão real exame, era saudado com um “bom dia vizinho”, porque ali todos eram vizinhos, e com uma descrição detalhada do seu dia até essa hora. Como o café era maioritariamente frequentado por clientes habituais, este ritual era aceite e recebido de bom grado, que a vida é madrasta e os filhos se os houve há muito se foram.

À hora do fecho ia devagar para casa, equilibrando-se na sua bengala, arrastando os pés para não arriscar cair na traiçoeira calçada lisboeta, murmurando ainda pequenos acontecimentos do café para quem a quisesse ouvir.

Um dia não saiu de casa a seguir ao almoço. Na verdade, um dia nem se levantou. Se se tivesse levantado teria assistido, desgostosa, ao derrubar da porta de sua casa pelos bombeiros do bairro, chamados a acorrer à senhora da mesa 1 pelo dono do café.

Mas não se levantou. Morreu feliz a dormir, enquanto sonhava com o dia do seu casamento em 1960. E foi encontrada com um grande sorriso nos lábios, coisa que nunca se lhe tinha visto em vida.

just do it already!

Quando tinha 15 anos tinha sempre imenso tempo. A vida ia demorar muito até começar a sério. Ainda estava só a aprender, podia fazer os erros que quisesse, e queria muitos, queria-os tanto! Ainda tinha tanto tempo para saber, para decidir, para pensar, para agir.

Aos 30 a vida é uma sucessão de dias iguais e repetitivos, de movimentos cadenciados, produção em massa, mas eu continuo à espera que a vida comece.

Se calhar a vida esqueceu-se foi de me avisar que já começou.

it changes when the sun goes down

A música batia-me bem alto no peito, pulsava-me nas veias enquanto abanava o corpo inconscientemente, perdida entre em nevoeiros de álcool cigarros e suor, cheiros estranhos à minha volta.
As peles tocavam-se sem parar, sem tréguas, tudo igual, sem tabus nem receios.
Os olhares eram sempre profundos, mesmo quando não queríamos, e muitos corações eram partidos só com um levantar de pestanas insensato.
Os rímeis escorriam pelas caras suadas de energia e choros nas casas de banho à velocidade da luz.
Romances feitos à pressa entranhavam as unhas nos meus braços, posses nocturnas inconsequentes que deixavam as marcas que conseguiam onde conseguiam e como podiam.

Manifesto


Comemorar a Revolução dos Cravos de há uns anos para cá, faz-me sempre pensar demais no estado em que estamos a deixar o nosso jardim que um dia foi de Éden, certamente. País com actual lotação esgotada de charlatões e charlatonas...
O fenómeno global da massificação da estupidez que aqui encontra grande eco, conseguido maioritariamente através de meios de informação sem nexo, que educam há décadas gerações de ignorantes, social, historica e politicamente, e de um sistema de ensino que de ensino tem pouco, vive apenas da repetição de conceitos ultrapassados. O povo português segue entusiasmado os dramas dos vampiros adolescentes e revolta-se contra o Governo, por tudo e por nada, sem nunca perguntar o que foi um dia perguntado por quem inspirou milhões: ask not what your country can do for you - ask what you can do for your country
Desresponsabilização levada ao limite, individualismo assustador, quando juntados com uma crise económica que, se bem me lembro, dura desde 1992, e uma desmotivação generalizada quanto aos fundamentos da própria existência moderna estão a criar carneiradas desmotivadas que seguem o pastor só porque não sabem pensar por si mesmos, e quando o sabem, raras excepções, têm medo da diferença, medo de falhar, medo do medo que têm...
Neste dia, cada vez mais é preciso coragem para acordar, para assumir, para enfrentar, para solidarizar...
To come together, right now!

ceci n'est pas une pipe

Dúvida existencial: o que fazer quando o barulho que nos enche o dia-a-dia abafa o nosso instinto? Como distinguir o que é real das metáforas que inventamos para tornar a rotina suportável? Como é que percebemos o que devemos ouvir? Medo, culpa, insegurança, sentimentos de protecção, hábito, comodismo, serão estas manifestações de memórias enterradas, o subconsciente a mostrar-nos padrões de comportamento conhecidos e seguros, ou são raciocínios lógicos a puxarem-nos para safe zones?

O que nos leva a não arriscar e acabar a viver com sonhos? Razão, ou medo?

being cool is...


Daqui: http://aconversationoncool.tumblr.com/

happy days!

De repente Lisboa está menos cinzenta!

segredos

Todos temos um segredo que não contamos. A ninguém. Nunca. Às vezes é qualquer coisa tão simples como qual é o nosso maior sonho, aquele que julgamos inalcançável. Outras vezes são medos antigos, bem enraizados, que cresceram connosco à volta das veias e músculos, tão nossos que parece que não os podemos remover sem cirurgias invasivas e, sem dúvida, dolorosas. As máscaras que usamos são impostas para os esconder, para ninguém ver aquilo de que realmente somos feitos, porque pensamos que se nem nós conseguimos ver de frente os nossos segredos, os outros podem assustar-se e ficamos sós neste mundo frio.
O mais engraçado é que se algum dia confiarmos em alguém, esses segredos serão a melhor coisa que temos a partilhar. Se retirarmos as máscaras, como quem tira as camadas de uma cebola - metáfora fácil - podemos até chegar a descobrir que gostamos muito de quem somos e que não precisamos de ter mais medo. De quem somos mesmo, e não de quem nos fomos tornando para agradar a esse mundo frio que nos deixaria sós caso falhássemos alguma das suas regras e obrigações. O difícil é mesmo confiar em alguém, sobretudo em nós.
E um dos meus maiores segredos é também um dos meus maiores sonhos, inalcançável em absoluto. Adorava saber cantar o que escrevo, alto, bem alto, para uma plateia gigante. Não esconder mais o som da minha voz, as palavras que me enchem a alma e o juízo… Saber conjugar palavras e sons harmoniosos, saber encantar uma plateia. Partilhar com outros o que o meu corpo sente quando escrevo, quando não fujo ao que me sai das mãos, quando sinto sem a consciência aguçada e crítica da vergonha, do aceitável.
Ou seja, sem metáforas, o meu maior sonho é viver sem medo, sem vergonha, sem a limitadora consciência do que os outros esperam de mim, daquilo que devo cumprir, atingir, conquistar, fazer. Sem lutas.
E fazer apenas o que eu quero…

opinião

Chegou o momento de eu dar uma opinião, que tenho muitas e a maior parte são boas – ou assim me parecem.

Hoje tive uma epifania, desta feita não sobre o que escrevo, mas mais com o país onde vivo.

Eu adoro Portugal, por tudo e por nada. Um dos nadas é sem dúvida o potencial do País. Este é um País com um enorme potencial. Temos as paisagens mais bonitas, o clima mais temperado, a gastronomia mais saborosa e simples... e o que é que fazemos com todo esse potencial? Nada! Ou pior, estragamo-lo e tornamos o que poderia ser bom numa confusão, complicação, num marasmo...

Já tentaram pedir uma informação por telefone, a uma entidade pública? Hoje em dia já não há contactos directos, por isso tem que ser através das "linhas azuis" (ou verdes, depende do mood do momento). Mas depois na linha azul ou verde fazem gracinhas como mandarem as pessoas ir perguntar a mesma coisa, mas ao balcão. ‘E não me vão dar a mesma informação que a senhora?’, perguntei eu em semi-inocência ‘Não, porque nós aqui somos o atendimento informativo’.
Ahhh, claro, percebo perfeitamente, nem é preciso dizer mais. Se no atendimento informativo não sabem a resposta, peça-a em pessoa ao balcão, em que serviço não sabemos, mas ao balcão por definição sabem sempre mais do que ao telefone porque o telefone baralha as informações do atendimento... É tecnologia a mais, claro...

Também percebi, generalizando claro, que o Português que fica em Portugal (os cérebros fogem) é um ser inerentemente complicado, passivo e conformado.

Está frio em casa? Não há problema, põem-se mais umas camisolas ou mantas e acende-se o aquecimento, não interessa que o motivo para o frio dentro de casa seja um essencial e básico mau isolamento, não vale a pena refilar, nunca resolvem nada... Não gostas do que fazes? Aguenta, porque é mesmo assim... Queres mudar de emprego e fazer something completely different? Não pode ser, e o que é que as pessoas vão dizer? Ainda por cima essas coisas esquisitas não dão dinheiro, e o importante, todos sabemos, é o dinheiro!

E assim vamos vivendo, conformadinhos ao que temos, a sonhar com o que não temos e gostávamos de ter, sem a menor ideia de como lá chegar porque tudo é complicado, difícil e, normalmente, baseado em cunhas, contactos ou conhecimentos... Então agarramo-nos a este ópiozinho limitador “é mesmo assim”.

Mas assim como?
Quem disse que era assim?
Quem decretou que independentemente do que queremos temos que viver com o que nos dão, de esmolinha, e ficar agradecidos, a cavalo dado não se olha o dente?
Quem mandou sermos todos iguais, cinzentos?
É porque faz muito sol em Lisboa? Olhe que mão caro amigo, cada vez menos.
É para não confundir as pessoas? Mas se calhar as pessoas precisam de ser confundidas, de sair da sua urbano depressão mais do que uma semana por ano no Algarve.

É preciso acordar! Tanto quanto sabemos só temos uma vida, e a qualquer momento ela pode acabar, ninguém tem garantias de quando vai morrer!

Cada dia é único apenas por ser aquele dia, cada passo é uma escolha apenas por ser um passo!

O que está à nossa frente é muito simples: queremos viver, ou ir vivendo?

Happy event

Quando abriu os olhos pela primeira vez só viu uma luz imensa e desatou a chorar. Mas que raio era isto? Porque a tiraram de onde estava, da sua casinha, quentinha e aconchegante, onde estava rodeada daquele líquido suavezinho e espesso, para a deixarem aqui ao frio, sem nada à sua volta que a protegesse? Mas que diabo de criaturas malvadas podia fazer isto a um pobre ser indefeso, que mal abria as pálpebras e cuja única forma de comunicação eram uns inofensivos balidozinhos?
Mas de repente embrulharam-na numa coisa quentinha e aconchegante, que lhe lembrou o líquido da sua casinha perdida, e pousaram-na num sítio molinho, que mexia e lhe fazia umas cócegas no braço.
Já sem chorar, abriu os olhos mais uma vez e viu a coisa mais bonita que alguma vez tinha visto. Não sabia bem o que era, mas olhar para ela fazia-a sentir-se muito bem, como se tivesse voltado para a sua casinha. A esta coisa linda linda juntou-se outra, maior e diferente, e então percebeu que este lugar era ainda melhor que a sua casinha, e já calma, fechou os olhos e adormeceu, aconchegada ao colo da sua mãe, sob o olhar embevecido dos recentes Pais.

podia ter acontecido

Freneticamente abria os braços e voltava a baixá-los desencorajada. A sua cara marcada estampava um contagiante desespero, qual Medusa de tempos ditos modernos.
Tinha os cabelos pretos compridos emaranhados, e à cintura uma velha bolsa coçada, pendente sobre a saia comprida que parecia um dia ter sido encarnada. Nos pés restavam tiras do que poderiam ter sido sapatos, quem sabe, e o peito trazia coberto apenas com o que poetas melhores cantariam como fina cambraia encardida. As faces escuras, sujas de séculos de podridão herdada, estavam por ora rosados de angústia.
Nenhuma das centenas de pessoas apressadas que nela tropeçavam ousava desviar o olhar do caminho pré estabelecido, assustadas pelos gritos de dor que ia soltando. Pegar-se-ia pela caridade?
Finalmente um bom samaritano de outros tempos aproximou-se daquele aflito embora estranhamente belo animal, depois de calmamente ter bebido a sua bica na improvisada plateia.
Após várias tentativas goradas de contacto, o nosso bom samaritano compreendeu finalmente que alguém lhe arrancara o filho bebé das mãos, e o levara para parte incerta, mesmo ali onde se encontravam, e ninguém fizera um gesto redentor... Nem mesmo ele...

associações 2

Doem-me as costas, os olhos, de fixar continuamente este ecrã não táctil à espera de absolvição ou de solução, indiferente a que vier, só é preciso buscar algo, ininterruptamente, estímulos imediatos sem nexo, manter a cabeça ocupada, porque parar é morrer.
Para quem, pergunto-me eu?
Morrer não será dar de nós bocados insubstituíveis em troca de prazeres momentâneos, fugazes fugas para a frente, para não pensar muito, que isso faz mal, é sinal de desocupação, porque depressões se curam com trabalho... E quando a causa da mesma for esta malfadada cura? Quid?
Mudar é preciso, sempre!

excepção à regra

Nunca tinha casado, nunca tinha tido filhos, nunca tinha comprado uma casa nem tinha aderido a qualquer health club em busca da vida ideal. Nunca tinha ganho qualquer prémio, nunca tinha tido um salário acima da média e nunca tinha sido promovida a um cargo de sonho. Não tinha imensos amigos nem saía à noite todos os fins-de-semana em serões memoráveis.
Mas era feliz. Tinha a perfeita noção que ela não era nada daquilo que a sociedade exigia como requisitos mínimos de felicidade garantida. Era rechonchuda, tinha celulite, tinha cabelos brancos que não pintava. Não se vestia à moda e raramente comprava roupa nas Zaras deste mundo. E era feliz.
Não ia jantar aos restaurantes badalados que faziam o objecto das descrições animadas dos jantares das suas amigas, não tinha o nome nas guest lists dos bares da moda da capital, não era convidada para as Lisbon Fashion weeks ou afins. Não fazia férias em Courchevel nem na Sardenha. Não era alvo das máquinas dos fotógrafos das revistas cor-de-rosa e ninguém tinha qualquer curiosidade em saber com quem é que ela tinha tido romances fugazes.
E no entanto se alguma vez lhe perguntassem do que sentia verdadeiramente falta, ela responderia com um sorriso sincero, ‘nada’.
Tinha tudo o que queria ter na vida. Sentia-se verdadeiramente abençoada por estar viva. Achava aliás bastante ridículo a maneira como toda a gente andava sempre a correr para ter mais qualquer coisa. Quando alguém lhe contava entusiasmado como tinha comprado aquele gadget do momento, ou como tinha encontrado o homem dos seus sonhos, ou como tinha tido um aumento, ou uma promoção, tinha alguma dificuldade em entender a razão de tanto exaltamento. E sorrindo interiormente, tinha a certeza que quem era verdadeiramente realizada era ela, que comia o que queria, fazia o que queria e não sentia necessidade desses mesmos gadgets, homens de sonhos caducos, aumentos ou promoções.

lost words

The angel opens her eyes just to close them swiftly in denial of what have we done to this Garden of Eden

mais verdades absolutas inconsequentes

Regra n.º 1: As mulheres nunca podem dar o primeiro passo. Se um homem vem ter contigo num bar e quer conhecer-te, ignora. Só podes mostrar interesse se conheceres alguém que o conheça.
Regra n.º 2: Nunca dormir com um homem na primeira vez que o conheces. Play hard to get, mesmo se até te apetecer ir para a cama com ele.
Regra n.º 3: Se saíste com um homem, não lhe ligues no dia a seguir. Tem que ser ele a ligar. Senão ligar, que dizer que não está interessado em ter uma relação séria contigo, e isso é a única relação que podes querer.
Regra n.º 4: Good girls don’t have one night stands. Se queres ser o tipo de mulher que os homens apresentam às mães, só podes ter relações sérias.
Regra n.º 5: Numa relação, nunca podes ser tu a querer sexo. E mesmo que queiras, play hard to get again. Fá-lo lutar pelo teu corpo constantemente.
Regra n.º 6: Nunca sejas a primeira a dizer “Eu amo-te”. Além de mostrar que és fraca, carente, é foleiro dizer “Eu amo-te” em português. Arranja um eufemismo qualquer quando ele já tiver dito primeiro.
Regra n.º 7: Se ele te perguntar com quantos homens já dormiste, mente. Nunca tiveste muitos.
Regra n.º 8: Nunca mostres que és inteligente, e sobretudo mais inteligente que ele. Ri-te sempre das piadas dele, mesmo que as conheças desde o dia em que falaste com ele pela primeira vez.
Regra n.º 9: Não vás viver com ele. Se viveres com ele, ele nunca se vai querer casar, e esse é o objectivo último de todas as relações sérias a partir dos 20 anos.
Regra n.º 10: Mantém os jogos todos durante a relação, mesmo que seja séria e duradoura – nunca atendas o telefone à primeira, nunca ligues demasiadas vezes, nunca digas “Eu amo-te” muitas vezes (ou o seu equivalente), nunca te mostres demasiado feliz por estar com ele, façam muitos programas fora de casa para manter a vida a dois interessante.

Estas são algumas das regras que todas as mulheres ficam a conhecer a fundo a partir da adolescência. Aliás, o que parece acontecer é que em termos de relações, o ser humano dito civilizado nunca sai de um estado de permanente adolescência, estado esse em que tem que planear, racionalizar cada passo, pensar nas consequências sociais de cada frase ou atitude, e sobretudo, nunca dizer a verdade ou agir livremente.
Existem livros vários sobre como “agarrar um homem” ou “manter o interesse na relação”. A maior parte deles não nos diz o mais essencial: qualquer relação humana serve o propósito de nos completar de maneira a evoluírmos conjuntamente e, a curto prazo, sermos felizes. Se pensarmos demais sobre matters of the heart, nada faz muito sentido. E claro, se analisarmos uma relação que não correu como gostávamos depois de ela acabar, haverá sempre milhares de situações em que achamos que devíamos ter agido de outra forma. Mas a beleza da vida, para mim, é termos agido da melhor forma que sabíamos e queríamos no momento em que agimos. E, de qualquer maneira, como ouvi num filme, falar sobre amor é como dançar ao som da arquitectura.

assim-assim

Deixo a água quente escorrer-me pelos cabelos, costas, cara, até se afundar nos meus pés. Tento imaginar que cada gota de água que percorre o meu corpo é as tuas mãos, a tua boca, que de cada vez que inspiro é o teu cheiro que sinto... Tenho que me apoiar na parede para não cair, tonta de desejo criado mas não consumado.
Nada disto faz sentido, na realidade. Obrigar seres nómadas a se ancorarem mutuamente é absurdo. Apelo ao meu cérebro para invadir a minha alma, conquistar pensamentos que me afundam e hastear bandeira sobre sentimentos descontrolados.
É inútil...

subjectividades

Mensagem de amor – versão técnica:

Serve a presente missiva para informar V. Exa. do seguinte, considerando as inglórias tentativas de contacto telefónico que foram encetadas hoje pela minha pessoa. Com efeito, por 3 (três) vezes lhe tentei ligar para o seu número de telemóvel hoje, dia 25 (vinte e cinco) do mês de Março do ano de 2010. Infelizmente não me foi possível chegar a contacto com V. Exa., debalde das supra referidas tentativas, tendo sido reencaminhado sempre para a respectiva caixa de mensagens de voz do telemóvel de V. Exa.
Assim, aproveitando esta oportunidade para lhe transmitir os meus mais calorosos sentimentos e respeitosos cumprimentos, tenho o gosto de lhe informar que a sua ausência tem sido deveras notada pelo ora signatário, pelo que mui gentilmente lhe solicito que me contacte com a maior brevidade possível, assim que adequado.
Na expectativa do seu contacto e no aguardo dos seus adicionais comentários, subscrevo-me com os meus mais sinceros e cordiais sentimentos,

Mensagem de amor – versão realista

Tentei ligar-te, não atendes o telemóvel. Tenho saudades. Liga-me assim que conseguires. Beijinhos!

Mensagem de amor – versão Morangos com Açúcar

Ñ atendes :( Liga! Bjs! ;)

Mensagem de amor – versão that’s it!

Meu amor, metade do meu ser, onde andas que não estás comigo? Com quem falas que não comigo? A minha alma chama por ti, o meu corpo geme o teu nome, oferece-me a honra de um teu olhar, ou palavra. Amo-te infinitamente mais do que seria possível.

Então...?

Porque é que estás aqui, assim, a olhar para mim? Já me viste antes? Onde? Conheces-me de onde, diz! Não te acanhes, conta-me tudo!
O que queres? Diz já, não percas tempo! Não há tempo a perder, o tempo passa por nós de fugida, corridinha de coelho apressado!
Quem és, ao menos sabes? Deves saber, tens que saber! Como é que não sabes? Mas que raio andaste tu a fazer tantos anos que não sabes quem és!
Mas mais importante, és feliz? Não sabes? Deixa-te estar então, não te canses. Vive a tua vidinha, conformado conformista… contentinho, não é? Leve levezinho, como deve ser…
Então vá! A gente vê-se por aí…

Associações

E agora voltar para o que era antes, ou antes o que nunca foi, ou melhor o que seria porventura se tudo não tivesse acontecido depois, a seguir ao que não foi mas devia ter sido…
Dar razão a quem não a tem ou quem luta pela razão sem qualquer sentido não tem lógica mas convences-te que é preciso para aplacar espíritos inquietos, para não ouvir o que nunca se deveria dizer. Responder a inquietudes alheias para espalhar tranquilidades irrequietas, apenas porque sim.
Sentir demais, pensar demais, amar demais, temer demais, cansada demais para aproveitar tudo o que tens em ti… Sinceridades frágeis como sóis de inverno não podem ser espezinhadas impunemente. Porquê deixares-te atingir por balas sombrias de desejo não cumprido, vontades reprimidas por incontroláveis necessidades de pertença solitária, invisível no cimento frio insensível…
Máscaras insondáveis, perguntas deixadas no ar, músicas que não se cantam por vergonha de estranhos que nunca se conhecerão, mãos vazias que deviam estar cheias de alma, dores dificilmente apaziguadas…
Busca de descanso cerebral de corações interligados, simbiótico crescimento adolescente com medo de ser adulto porque os dias se tornam iguais, repetitivos em rotineiras monotonias sem surpresas…
Basta!
Sê criança enquanto podes, don’t go gently into the night*!
*Dylan Thomas

talvez saudades da terra que nunca tive

Quando vim da serra cá para baixo tinha 13 anos. Nunca tinha visto o mar, só as ribeiras ao pé de casa, onde o meu pai levava as ovelhas a pastar quando era cachopa, depois ficou sem as ovelhas e teve que ir trabalhar para a fábrica, onde se embalava a água. Na altura não entendia porque é que a água era embalada assim, então as pessoas não podiam ir buscar a água às fontes como nós íamos? Ou abrir furos como os meus pais fizeram quando finalmente puderam construir a nossa casinha lá ao pé da aldeia? Depois de vir para a cidade grande percebi, aqui não há terra para furar, nem fontes de onde brote água tão límpida como as das nascentes na serra, onde podemos mergulhar a cara toda nos dias de verão e sentir o líquido gelado escorrer-nos pelo pescoço…
Depois de vir para a cidade grande tive que me acostumar a coisas tão estranhas como a ir buscar ao supermercado alfaces já ensacadas e fininhas fininhas como se fossem feitas daquele papel vegetal com que a minha mãe fazia as lérias lá em casa, ensinada pela minha tia cozinheira do convento. Acostumei-me também, apesar dos meus lamentos, àqueles papo secos que se desfazem mal se lhes pega, de crosta mole e meia empapada… Ainda tenho tantas saudades daquele pão áspero que a minha mãe tinha sempre pronto de manhãzinha, nem sei bem se aquela santa alma alguma vez dormiu. Também tenho muitas saudades das festas lá em casa, na consoada era ver a minha mãe com as minhas tias e a minha avó, saiotes em rodopio contínuo como nos bailes dos sábados, atarefadas à volta do velhinho fogão a lenha entre sopas, bacalhau, filhozes e afins...
Mas o que nunca me acostumei aqui na cidade grande é a esta pedra gelada da calçada que esconde a terra como se aqui não fossemos todos animais como os outros…

jogo

Quando saiu do consultório eram três da tarde de um dia solarengo da capital. O calor desta cidade lacrada atingiu-o com um soco violento no queixo. Atordoado procurou de olhos semicerrados os seus óculos escuros, que pôs nos olhos sôfrego de sombra e silêncio.
O médico que tinha acabado de consultar tinha-o informado, ‘com muito pesar’, que tinha encontrado um corpo estranho na sua cabeça, uma coisa que nada tinha a ver com ele, com os seus sentimentos ou memórias. Tinha-lhe dito que aquele ser alienígena do seu corpo o mataria no prazo máximo de um mês. Melhor, tinha-lhe dito que ele tinha um mês de vida.
‘Engraçadinho o médico!’, pensou ele, ‘terá alguma bola de cristal? Porquê um mês quando eu posso morrer antes? Posso ser atropelado por este carro que aí vem a descer a rua’ e pôs um pé na estrada, devagar, sem pressas. ‘Ou posso morrer engasgado com o bife que vou comer logo à noite. O que lhe dá tantas certezas que só vou morrer daqui a um mês? É que essa certeza é mais do que alguma vez tive. Nunca soube se não ia morrer no segundo a seguir por alguma razão desconhecida. Portanto, se me afirmam com toda a certeza que só morro daqui a um mês, isso é mais do que eu tinha antes.’
E com esse pensamento tirou o pé da estrada, voltou para o passeio e foi atravessar a rua na passadeira.

who is the crazy one?

- E já agora, porque é que acabei assim, hás-de me explicar. Velho, feio e pobre, sempre tão sozinho – murmurou o velho, de cabeça baixa, olhos fixos nos pés envoltos em farrapos igualmente velhos que um dia terão sido, imaginemos, sapatos.
- Já te disse que eu não contribuí para isso. Foi tudo escolha tua. Já andámos às voltas com esta conversa, para quê é que me perguntas sempre o mesmo?
- Esperança que me digas alguma coisa diferente... Isto não pode ter sido tudo escolha minha... Não me lembro de ter escolhido beber até à exaustão todos os dias, andar pelas ruas em farrapos a pedir esmolinha, faça frio ou sol, a eternos transeuntes a quem só vejo as pernas, com sorte as mãos... Não escolhi ter sido esquecido pelos meus, lá da terra... – respondeu o velho, tristonho enquanto coça a barba castanha não de cor, mas de sujidade já inata.
- Ah não? E quando vieste para a cidade trabalhar? Não foste tu que escolheste não ir acabar a escola à noite? Bem que me lembro das vezes que te tentei dizer isso, nunca ouviste. E quando batias na tua Maria, quantas vezes não te avisei que ela qualquer dia te deixava? Também nunca ouviste... Sempre bêbado, apesar de todos os esforços que fiz para afastar a garrafa da tua boca. Preguiçoso ingrato! Velho casmurro! Tu escolheste tudo o que te era mais fácil para ti em todas as alturas!
- Tens razão... – disse o velho, começando a chorar inconsolavelmente, aquietando-se aos poucos enquanto se embalava para a frente e para trás. – Mas estou tão sozinho... Ninguém para falar...
- Tens-me a mim! Nunca te falhei pois não? Porque é que te ia falhar agora?
- Não percebo porque é que está toda a gente a olhar para nós.... – disse de repente o velho finalmente levantando os olhos do chão – Achas que temos alguma coisa na barba?
- Não ligues, já sabes como é a gente. Anda mas é daí que temos que sair nesta paragem

E assim lá foi o velho, saindo do metro cambaleando no seu casaco comprido coçado do tempo e da fria calçada onde se deitava, sempre a falar para o enorme vazio que o rodeava.

palavras que gostava de ter escrito

"... o amor é como uma obra de arte, uma sinfonia à qual não se podem acrescentar outros sons sem a deturpar e destruir." Francesco Alberoni

stop!

Tudo passa, tudo torna, tudo vira, tudo acaba, mas tudo começa de novo outra vez, e depois passa, torna, vira, acaba para começar de novo mais depressa, sem tempo para pensar, parar para escutar, sentir-te a ti, a mim, sentir os outros à nossa volta que rodopiam sem parar sem volta nem torna nem porquê nem porém, não penses, não pares, faz, produz, consome, come, compra, executa, realiza, não esqueças que tens que ser, fazer e parecer tudo o que todos querem sem excepção nem porquês nem porém.

Ou então não.

Pára. Respira. Olha à tua volta. Vês-me?

individualidades uniformes

Acordo de manhã todos os dias à mesma hora. Manhãzinha bem cedo. Levanto-me rapidamente ao primeiro toque do despertador. Ponho os chinelos, que deixo sempre à noite bem alinhados ao lado da cama, ao nível onde os meus pés aterram quando me levanto. Visto o roupão estendido sobre a cadeira ao lado da cama, e imediatamente abro a janela. Não sinto o frio entrar pela gola do roupão, através do meu pescoço, chegando até às minhas costas depressa demais. É tudo uma questão de força mental, nada mais. O frio é psicológico.
Faço a cama rapidamente, e olho em volta para me certificar que o quarto fica bem arrumado. Não que seja fácil desarrumá-lo, os poucos pertences que tenho resumem-se a uma cama individual, de metal, uma cadeira de plástico branca, daquelas de jardim, herdada já nem sei de quem, um candeeiro de plástico também ele branco, descartável como qualquer outro produto para consumo das massas, e um mísero despertador digital.
Com passos ordenados vou à cozinha, onde ponho o café a fazer na velha moka dos meus Pais. Abrindo a porta das traseiras encontro pendurado, como é usual, os dois diários papo-secos encomendados semanalmente na padaria da esquina, a 10 cêntimos cada um. Congelo um para o jantar e como o outro, com manteiga, acompanhado de um morno café com leite.
Lavo a loiça e seco-a rapidamente. Tiro para fora o jantar de hoje, sempre para uma pessoa só.
Tomo um duche rápido, não mais que dois minutos, secando-me à toalha propositadamente áspera para acordar. Faço a barba, lavo os dentes, penteio o cabelo e visto o fato azul escuro. Não uso perfume, na minha cabeça isso é coisa de casal, de que nunca fiz parte.
Agarro no telemóvel, nos óculos escuros comprados na promoção do hipermercado, no porta moedas e nas chaves de casa e saio de casa, trancando a porta de imediato.
Dirijo-me com passos rápidos para a paragem do autocarro.

Será que é hoje que algo diferente me acontece?

declaração

Tenho tido medo, muito medo de ter perdido a inspiração. Depois apercebi-me, ao olhar para ti, que não a tinha perdido, tinha simplesmente concentrado a minha atenção noutra beleza, uma que não precisa de palavras para ser sentida.

verdadezinha absoluta

Há histórias que se lêem para saborear palavras, e há palavras que se lêem para entender uma história.

a máquina

Como era possível serem apenas três da tarde e já estar tão cansada... Não era só um estado de saturação emocional pela falta de sentido do seu dia a dia (que não se lembrava de ter escolhido activamente), mas mesmo fisicamente cansada.
Com um suspiro profundo ajeitou a carteira debaixo do cotovelo, há sempre umas corjinhas de gatunos nas estações de metro, que nos apanham desprevenidas para tomar como deles o que nos custou tanto a ganhar...
Enfim, era a vida como ela era, não podia fazer nada para a mudar...
Chegada às escadas rolantes da estação de metro percebeu que as escadas ascendentes estavam avariadas, apenas funcionando as escadas descendentes. “que raio de lógica”, pensou ela, resmungando em murmúrios sobressaltados, “agora ter que subir estes degraus todos, com a carteira e a pasta mais as compras...”.
Bem, lá tinha mesmo que ser, o que é que ela ia fazer, não havia elevador e não sabia a quem se queixar.
Começou a subir, primeiro com alguma energia, resquícios de cafés matinais em excesso, depois mais devagar, até chegar ao ponto de ir subindo degrau a degrau, agarrada ao corrimão, arfante pecadora de cigarros fumados furtivamente. Olhando para cima percebeu que alguma coisa estava errada, mas não conseguia perceber o quê. Enquanto a parte direita do túnel da estação, onde se encontravam as escadas rolantes descendentes, estavam bem iluminadas, o lado esquerdo, o das escadas ascendentes, encontrava-se escurecido, e ao fundo do túnel só conseguia ver costas de pessoas paradas.
Quando finalmente chegou ao topo das escadas, ofegante, encaixou-se naquela barreira de casacos, à espera de passar e poder ir trabalhar, que estava a ficar atrasada. Mas que remédio há que respeitar as filas, não podia começar a empurrar toda a gente.
Devagar a multidão avançava, em uníssono, como um muro arrastado por correntes sobrenaturais. Não se ouvia um ai. Apenas o lento arrastar dos pés quando se ganhavam alguns milímetros de espaço à frente. De olhos baixos, a multidão só via os pés da pessoa à sua frente.
Foi por isso que ninguém se queixou de levar um tiro na fronte quando a fila seguinte do muro chegava à porta da estação. Os jornais chamaram-lhe uma inteligente medida de controlo do sobrepovoamento do país. Foram louvados os esforços do exército e sobretudo a contenção com que tudo decorreu.

O que escapou a todos os comentadores e politólogos foi que ali não se mataram seres humanos, apenas componentes irracionais de uma bem oleada máquina.

sereia suburbana

Lá ia ela pelo terminal do metro, a abanar a anca como se ainda estivesse na praia, ponderadamente inconsciente do efeito que causava ao passar, aliciante odor de sol e mar que se espalhava pelas alvas catacumbas. Ia murmurando entre dentes uma qualquer música que egoisticamente ouvia, levantando por vezes os olhos encarnados do sal, devagar, sem pressas.
Entrou no comboio à minha frente, ficou em pé, encostada ao poste, flirtando com as pulseiras várias que trazia nos pulsos e com os longos cabelos que lhe caíam pelo peito.
Senti-me completamente hipnotizado por tanta ingénua perversão, não conseguia tirar os olhos desta sereia suburbana, certamente oriunda dos meus mais íntimos pesadelos, que se mantinha altiva e alheia ao meu insidioso exame.
De repente, sem qualquer espécie de aviso prévio, as luzes do comboio baixaram para permanecermos numa acolhedora penumbra, e a carruagem encheu-se de fumo rasteirinho. Ficámos só nós os dois, o mundo tinha desaparecido, e o comboio andava cada vez mais depressa, sem sinal de preocupação com eventuais paragens.
Ela olhou para mim, desta vez de frente, e a música que só ela ouvia ecoou inesperadamente nos meus ouvidos, enquanto ela languidamente mexia no cabelo, atirando os longos cachos para trás das costas, sem nunca desviar o seu olhar sonolento do meu. Com uma mão no poste começou a dançar, contorcendo-se só para mim, em poses lentas, sem pressas.
Largou o poste e pé ante pé, no mesmo ritmo suave, dirigiu-se a mim, pousando uma mão sobre a minha perna, a outra no meu ombro, aproximando a boca sabor a cereja do meu ouvido, e murmurou roucamente “acorda”...
- Acorda! É a nossa paragem!
Lá estava ela, à minha frente. Envergonhado da triste figura que sem dúvida teria feito a sonhar, baboso, baixei os olhos ao passar perto dela, sem antes reparar no fugaz piscar de olhos que me ofereceu com um sorriso a meia haste.

kindness of strangers

Arrasto-me durante as aulas da manhã. Antes de vir para o liceu pus duas cartas na estação dos correios ao lado de casa, uma para os meus pais e outra para ele. O culpado de tudo. Claro que ele não vai poder lê-la, mas quero que os pais dele a leiam quando estiverem a chorar pelo fim da miserável vida que geraram. Quero que eles saibam que ele foi o causador de tudo isto, que se ele estivesse calado nada disto tinha acontecido. Ele era o motivo, o fim, a razão, e quero que todos saibam disso e percebam que ele não merece qualquer lágrima que por ele seja vertida.
Eu ia só revelar-lhes as consequências do que fizeram, era apenas a mão divina que lhes traria o merecido e justo castigo! Tantas vezes rezei à noite para que a tortura acabasse, para que eu pudesse ir ao liceu pelo menos um dia sem ter que me defender daquele círculo infernal. Implorei tantas vezes por absolvição do pecado maior e desconhecido que fez cair sobre mim esta punição diária. Mas nunca tinha tido qualquer resposta às minhas preces. E de repente percebera claramente que temos que ser nós mesmos a responder às nossas próprias preces, a trazer para nós a força dos céus contra os ímpios. Pecadores sem contrição. Sou o veículo da fúria sagrada, devida e esperada.
As armas pesam-me no cinto, e o casaco comprido desajustado deste calor traz a mim os olhares dos que sofrerão a minha raiva. Tento recordar-me de cada um deles para ter a certeza que hoje não escapam. Lobos em pele de carneiro, crueldade adolescente sem justificação possível, psicologia barata não os salvaria. Hoje não. E não de mim.
À hora do almoço, no fim da última aula, levanto-me para ir fechar a porta da sala para começar a espalhar ao meu redor a força da merecida fúria mas sou agarrado por uma mão que me toca no ombro.
- Boas férias Carlos! – ouço alguém dizer com uma voz ensolarada. Ela sabe o meu nome! Sem saber porquê respondo, fraco, “obrigado”, e saio da sala para o corredor barulhento de miúdos quase em férias grandes e descoberto do meu plano, com o coração tremendo, sorrio.
Afinal, é o meu último dia de liceu, a faculdade prevê-se menos agreste, para quê perder tudo agora… Ela até sabe como me chamo…

summertime lemonade

Eram cinco da tarde. O preguiçoso dia de Verão, embriagado de caipirinhas e banhos de mar, ameaçava acabar, lento... Evaporava a ânsia de sol que nos guiara até aqui, zombies de vontade. O torpor dos mergulhos invadia-nos as pernas, e deitados na toalha dura de sal entreabrindo os olhos imaginávamos errantes fantasmas entre a sombra das pestanas. O sabor da pele plena de maresia era viciante, e colávamos a boca ao braço indecisos se íamos para a esplanada ou continuávamos ali.
Com pequenos gemidos de prazer egoísta mudávamos devagar de posição até estarmos colados, corpos fundidos em desavergonhadas poses.
Finalmente nos levantamos, decididos, recolhendo os despojos do dia de praia, roupa que arranha e toalhas que não dobram, e com óculos de sol e perversa languidez sentamo-nos nas cadeiras de plástico envelhecidas pelas intempéries dos anos. Cabeças inclinadas para trás, quais desenraizados girassóis, pés descalços … Mais uma sangria e um cigarro, coragem para voltar para casa… Palavras que se tornam murmúrios e mãos simbióticas em constante contacto… Sábados…

human behaviour

Anseio por ti, pelo teu cheiro, pelo teu colo, pelas tuas mãos no meu pêlo, nas minhas orelhas. Porque me largaste? Não ficava suficientemente contente quando te via? A cauda não batia com força? Não saltei tão alto como devia quando entravas em casa, cansado da rua?
Eu esperava por ti todos os dias à porta, religiosamente. Sentado em sentido e alerta para não deixar intrusos entrarem na tua toca. Portei-me bem, não foi? Então porque é que me deixaste aqui, ao frio, no meio de estranhos cheiros e formas que não conheço, pernas alheias que não consigo subir? Não gostavas quando me levavas a passear e eu adaptava o meu passo rápido de animal irracional ao teu humor? Lento se estavas triste, rápido se chateado, e solto se feliz.
Não encontro o teu rasto, perdi-te na cidade, nesta pedra fria que arrefece o meu olfacto. Os meus olhos não explicam por quem eu procuro, inutilmente tento ganir à gente para que me leve para casa. Mas como? Não sei onde é casa.
E de repente encontro-te! Lá estás tu, a correr, mãos em concha em frente à boca! Estás a chamar-me! Ó alegria suprema de te ver! Estou aqui, vês-me? Ouves-me? E de repente olhas para mim e a tua cara abre-se num sorriso que me faz saltar para o teu pescoço como louco, como nunca!
Leva-me para casa, por favor… Prometo que me porto bem…

primeira epifania

Sim quero.
Quero-te aqui, ao pé de mim.
Até me fartar.
Até tudo acabar, só por acabar.
Quero poder fartar-me,
quero ter-te tanto que me canse de ti.
Quero! E basta.

1997 revisto

Ainda te quero para mim.
Ainda te quero para sempre, eternamente comigo.
Talvez amanhã não te queira para sempre,
certamente daqui a uns meses não te quero sequer.

Mas agora quero-te. Para sempre.
Como se eu fosse o resultado de ti, em lógicas continuações de nós.
São tuas as minhas mãos, teus os meus olhos, os meus braços, é tua a minha boca...

És tu que me tens ainda.
Não me quero de volta.
Talvez um dia.
Agora ainda não.

jogos nabokov

Era adorável com ao seu mini vestido cor de rosa que quase nada tapava, aliás nem seria esse o propósito. Do alto dos seus quinze anos espalhava um aroma de pastilha elástica de morango misturado com o perfume da moda e o odor dos cigarros roubados à socapa da carteira da sua mãe. Os cabelos castanhos tingidos do sol, sal e cloro trazia compridos e emaranhados num estado permanente de sono interrompido que deixava tudo à imaginação. A boca era quente e cor de rosa como o vestido e parecia estar constantemente a brincar com um chupa-chupa de um qualquer sabor perverso. Os olhos trazia-os tapados por uns óculos de sol de outros tempos, relíquias de juventude alheia. A pele morena das férias grandes coberta de penugem loira era uma provocação por si mesma. Os pés pequenos adornados com havaianas brancas contrastavam com a cor da pele que contrastava com as cores da pulseira que abanava com orgulho no tornozelo como se orgulhosa morena de Angola fosse…
Era adoravelmente tentadora neste espectáculo depravadamente apetecível, este pacote que usava à discrição para atingir objectivos de menina mimada. Fosse quem fosse o alvo da sua atenção - de curta duração, sempre - não tinha qualquer hipótese, resistir era inútil, e qualquer tentativa de luta só lhe dava mais prazer na perseguição da sua presa.
Quando finalmente se dignava a tirar os óculos de sol, os olhos cor de escárnio escaldante derretiam qualquer corpo a ponto rebuçado. Um pequeno levantar de sobrancelha treinado ao espelho e um semi-sorriso de garotice bem estudada eram quanto bastava para a rendição total.

rituais preparatórios

Acordava de manhã cedo, bem cedo. Demorava muito tempo a arranjar-se para ir trabalhar. Primeiro retirava o produto branqueador dos dentes que uma amiga lhe tinha trazido do estrangeiro. Depois o pequeno-almoço, sempre em casa, na enorme mesa da casa de jantar que ainda pagava em suaves prestações mensais. Com o seu roupão cor-de-rosa, o cabelo já penteado, e na cara a substância pastosa da máscara daquele dia. Comia com calma, sem pressas. Odiava correr de manhã. Arrumava a cozinha, arrumava o quarto, escolhia a roupa com cuidado. O duche também era lento e acolhedor, para acordar o corpo e a mente. Tinha lido numa revista que este era um dos primeiros rituais de paz diária para mulheres facilmente impressionáveis com tais verdades absolutas.
Enxugava-se vigorosamente, com uma toalha com propriedades esfoliantes comprada por catálogo, já não sabia qual deles. Espalhava o creme anti-envelhecimento nos braços, na barriga o creme redutor e nas pernas o anti-celulítico da praxe. Passava o creme dos olhos, aquele boião pequeno espelhado com elementos marinhos e o creme anti-rugas para peles mistas a oleosas no resto da sua cara mimada. Punha com algum sofrimento necessário as lentes de contacto com suaves reflexos de azul para esconder os olhos castanhos. Os dentes eram lavados com toda a precisão, primeiro a escova, depois o fio dental, depois o elixir. Vestia-se com cuidado para não amachucar a roupa neste processo difícil que era tentar sair de casa de manhã. Agarrou no secador e na escova redonda metálica e, concentrada, reformulou o cabelo como sabia que era a moda naquela estação. A cor aplicada no cabeleireiro era a ideal, estava orgulhosa de si mesma.
Agora era a sua parte preferida.
Escolheu a base e o anti-olheiras para aquele dia.
Primeiro a base, com a esponja especial que lhe tinha custado mais do que seria de esperar.
Depois com cuidado o anti-olheiras debaixo dos olhos.
Depois o iluminador nos sítios chave.
Depois o eyeliner e o risco nos olhos, a sombra cor-de-rosa a dar com o vestido escolhido.
Depois retocava o eyeliner e o risco.
Depois o rímel nas parcas pestanas.
Depois o pó solto para uniformizar a palete de cores da sua cara.
Depois o blush para acordar as bochechas.
Depois o batom também cor-de-rosa. Beijou ternamente um pedaço de papel higiénico como tinha visto inúmeras vezes nos filmes.
Finalmente o gloss.
Estava pronta para sair de casa. Pegou no casaco e na carteira e saiu. Passou pelo quiosque a comprar as revistas que tinham saído naquele dia, várias com várias celebridades nas capas e letras chocantes que revelavam vidas mundanas e dramas telenovelescos, e noutras com chamarizes irresistíveis como “Seja feliz em doze passos”.
Abriu a porta do carro. Sentou-se. Era hoje que ia conhecer o seu homem, o seu príncipe encantado. Tinha a certeza, estava pronta.

crónicas de um eléctrico amarelo

Sentou-se no primeiro banco vazio, o dos velhos e enjeitados.
Ajeitou a pasta, onde trazia os papéis para trabalhar em casa, os cálculos e balancetes e os livros de razão ou falta dela. Puxava os óculos para junto dos olhos, passava a mão nos cabelos húmidos de chuva e oleosidade constante. Fechava mais o sobretudo, o do seu Pai, remendado com orgulho pelas mãos tortas da sua mãe, que o meu filho doutor não há-de ter frio e tem que fazer boa figura no serviço.
Amanhã seria mais um dia igual a este. Hoje chegaria a casa, tarde, demasiado tarde, porque o caminho entre o escritório e a o lar “doce” lar demorava várias horas e meios de transporte diferentes. Havia dias em que acabava em pé todo o caminho, adormecendo agarrado a um metal solitário, enquanto segurava com os pés a pasta e com a mão o chapéu-de-chuva preto, que quando chovia tentava afastar das calças em esforços titânicos mas sempre inglórios. Um homem prevenido vale por dois, e por dois valia ele, nunca saía de casa sem o chapéu-de-chuva, era já motivo de risota dos colegas.
Jantaria qualquer coisa a correr que a mulher lhe deixara no microondas antes de dar a telenovela, depois de a beijar rapidamente na bochecha porque há muito lhe passara a vontade de a beijar como quando eram miúdos e namoravam nos jardins do bairro. Tentaria falar com o seu filho, único porque o dinheiro não deu para mais, mas a concorrência da playstation presente de Natal do ano passado era demasiado forte para um Pai contabilista e desactualizado.
Enquanto pensava no que o esperava em casa, neste vazio atulhado de bricabraques inúteis, sentiu-se sufocar por paredes invisíveis de bruscos cinzentos
Foi então que viu. Na entrada da porta do eléctrico estava um agente da polícia, fardado e de arma no coldre. Reparou que o coldre estava aberto, que nada o impediria de pegar na arma e de arrancar deste eléctrico a sua própria importância. Imaginou-se qual Clint Eastwood da sua meninice, que nunca fora de poesias, bradando a arma aos céus e exigindo respeito.
Mas respeito de quem, e porquê? O que tinha feito para merecer tal respeito? Tal como a sua mulher o relembrava diariamente, era um falhado, um zero, um nada. Um Pai ausente que não reconhecia o filho, um marido indiferente de uma mulher mal amada, um contabilista cinzento que confirmava em todos os minutos da sua existência velhos hábitos e clichés.
Lentamente levantou-se, pegou na pasta, no chapéu-de-chuva, carregou no botão encarnado para sair, de ombros pesados e cabeça baixa, pensando como tudo mudaria se ganhasse o euro milhões esta semana…

once upon a time, in a far away land...

Era uma vez uma fada princesa, que vivia no reino das fadas princesas, com a sua família de fadas princesas e com todas as suas amigas fadas princesas. Passavam o dia a fazer coisas que só as fadas princesas faziam, em perpétuo espanto com tudo o que viam, em perfeita conjugação com a natureza que as rodeava. Cantavam com os pássaros, nadavam com os peixes, corriam com os unicórnios e faziam enormes sestas à sombra das inúmeras árvores.
Esta fada princesa tinha ainda outra ocupação: observar o mundo das pessoas, as suas cidades, os cafés, restaurantes, lojas, todas as coisas inúteis que as definiam. Fascinavam-na na sua mistura semi-humana semi-divina, pareciam olvidados da sua importância, davam privilégios reais a trágicas rotinas diárias... Um dia decidiu que queria experimentar viver entre eles.
Pediu ao conselho das fadas princesas se podia experimentar ser pessoa, ver se conseguiria manter-se fada naquelas estranhas maquinações. Por ser uma fada princesa exemplar, foi-lhe permitida uma vida humana entre as pessoas. Com a condição de não envelhecer, para não se esquecer que era uma fada princesa e nunca sentir o peso da idade no seu frágil corpo.
E assim foi.
A fada princesa viveu uma vida humana entre as pessoas. Nasceu, foi à escola, fez asneiras, namorou, casou e teve filhos. Teve todas as experiências de uma vida humana excepto envelhecer.
E durante essa vida humana espalhou à sua volta uma leveza, uma alegria despreocupada e uma estranha harmonia como se tudo fosse parte de uma bem ensaiada peça de teatro que teria, certamente, final feliz.
E quando a fada princesa voltou ao mundo das fadas princesas, contou a todas as suas amigas e a quem mais a quisesse ouvir que uma vida humana, mesmo para quem não envelhecia, era uma imensa eternidade.

re-descobertas

Penteou os cabelos compridos com calma, como se o mundo se tivesse sentado a descansar. Agora não era preciso correr, já tinha corrido muito. Com cuidado desembaraçou o mar de prata que lhe escorria pelas costas, sem pensar nas horas ou nos mil afazeres com que habitualmente preenchia os seus dias.
Hoje talvez não os prendesse. Que glória esta demonstração viva do seu longo passado! Que ode às pessoas que tinha conhecido, reconhecido e perdido durante a sua vida! Cada reflexo branco era uma cicatriz que hoje lhe apetecia exibir com o orgulho de um veterano. Hoje não percebia o porquê da regra não escrita que as mulheres de bem deviam pintar os cabelos brancos. Que desonestidade lhe parecia, que fingimento narcisista, destinado a agradar a quem? A esconder o quê? Que vergonhas traziam estes fios brancos às suas portadoras?
Olhou-se ao espelho devagar, parando os olhos em cada ruga, em cada sinal, em cada mancha. De repente deixaram de lhe fazer sentido as toneladas de creme anti rugas, de esfoliantes, de protectores solares com que tinha presenteado a sua pele todos os dias da sua vida. Quanto tinha já gasto nestas tentativas de parar o tempo? Cada ruga era um sorriso, uma dor, um sentimento ali plantado na sua cara, baluarte de vida. Ao observar as suas rugas, sinais, manchas, lembrou-se dos seus pais, dos seus amigos, do seu primeiro amor, do seu último amor - o seu marido que ouvia cantar enquanto preparava o pequeno almoço - dos seus filhos, dos seus netos. Porque raio de carga de água tinha querido apagar estas rugas? Não tinha qualquer vontade de esquecer nenhum deles, nem sequer as dores passadas. Era tudo parte dela...
Ouviu a voz grave do seu marido a chamar por ela, olhou-se mais uma vez ao espelho, sorriu para si mesma enquanto murmurou um divertido parabéns.

pontos de vista

Entrou no autocarro e sentou-se no lugar vago ao lado da janela. Não andava de transportes públicos há muitos anos. Aliás, não andava em terra há muitos anos. Era impressionante pensar que estes monstros citadinos passavam pelo asfalto sem deixar qualquer rasto, como se fosse indiferente à terra o que por ela passava…
Sentiu uma enorme tristeza ao perceber que aqui, neste mar de cimento imenso, parecia que nada deixava marca, era tudo imutável, e até o vento era obrigado a percorrer corredores criados. Talvez fosse por isso que à sua volta via caras pesadas de pessoas cansadas do esforço que devia ser moverem-se sem a ajuda da natureza, perdidos sem guias. Aqui nada se via por cima das montanhas de pedra para além de um enorme cinzento. Aliás, dentro do autocarro só via o próprio reflexo perdido na janela.
Distraiu-se com o barulho incessante de um bebé, divertido com a chupeta, que punha e tirava da boca com ar de desafio, e pensou que talvez houvesse ainda esperança para esta raça estranha de gente citadina, se havia ainda crianças que se conseguiam surpreender a si mesmas, ali fechadas nas paredes escuras de um moderno autocarro condicionado.

desabafo

Há dias difíceis para escrever. Porque o telefone toca demais, porque a roupa se acumula no cesto, porque a loiça não se lava sozinha, porque há camas para fazer e chãos para aspirar e sopas para fazer.
Talvez um dia tudo se faça sozinho, ou de alguma forma automática, sem a nossa intervenção, e possamos passar o dia a fazer o que gostamos mais, apenas e só. E talvez aí não tenhamos rigorosamente nada sobre o que escrever.
Ou não, ou será apenas este sentimento de não ter nada para dizer um reflexo de uma preguicite resultante de mentes cansadas após semanas inteiras de endless problems solving?
Ou apenas o medo daquele ecrã branco enorme que nos olha fixamente à espera das nossas verdades absolutas?
Ou talvez seja mesmo a vontade de viver a vida antes de escrever sobre ela, de gozar os momentos de felicidade surreais?
Nesses momentos, mais vale escrever isto do que nada, certo?

conformismos desconformes

Saiu do serviço tarde para o que era habitual. Normalmente conseguia sair ao bater das cinco , mas como hoje era dia de greve tinha ficado para além da sua hora para ajudar o chefe. Não lhe interessavam as greves. Achava que isso era tudo obra de comunas, esses bandidos que não queriam era fazer nenhum. Por que outra razão é que as greves eram sempre à sexta-feira? Não, ele queria era trabalhar, para ter o seu dinheirinho certo ao fim do mês. Não arriscava perder este emprego, custara-lhe tanto chegar aqui.
Tinha começado a trabalhar aos 16 anos como varredor de ruas da capital, serviço duro e que o tinha feito mais solitário do que era antes, preso aos seus botões. Com esforço tinha conseguido acabar o liceu à noite, e rumado para um curso profissional de contabilidade, que lhe tinha aberto as portas de um serviço de finanças.
A partir daí os seus dias passaram a ser dominados por despachos, certificados, cadernetas, certidões, recibos, facturas, cartões, informações, declarações, coimas, contra ordenações e demais burocracias farpadas. Eram temas que dominava com a ligeireza das cabeças cinzentas, e sobre os quais não pensava em demasia, porque era assim mesmo, não havia em que pensar, apenas aplicar e cumprir, ou fazer cumprir.
Virgem por preguiça, ateu por convicção, vivia na casa que tinha sido dos seus Pais, há muito mortos de velhice ou cansaço, vá-se lá saber. O seu único consolo era a sopinha quente deixada pela Maria, vizinha de bons paladares que o ajudava nas lides domésticas.
Saiu do metro e caminhou até casa no seu passo miudinho de quem não tem preocupações mas também não tem alegrias. Imaginemo-lo de chapéu de feltro preto, numa Lisboa cinzenta de tempos idos.
Entrando em casa, foi saudado com gritos de alegria do seu irmão mais novo, que abraçou forte e ternamente. Viviam juntos desde sempre, era uma espécie de filho e não irmão, um ser eternamente dependente.
Era por ele que não se rebelava, que não saia do seu auto infligido casulo. Quem cuidaria do seu irmão mais novo se alguma coisa lhe acontecesse? Ninguém certamente, que ninguém tem amor suficiente para dar a estranhos.
Largou o casaco, agarrou o irmão mais novo pela mão que este lhe oferecia, e perguntou-lhe se já tinha lanchado, e se queria que ele lhe lesse uma história.

a velha

Na paragem de autocarro, era apenas mais uma velha rodeada de sacos de plástico tão velhos e gastos como ela, alguns apregoando lojas que já tinham fechado há largos anos. De vez em quando a patroa deixava-a usar um dos sacos das lojas chiques onde comprava aquelas roupas de marca, que serviam para o mesmo que serviam as suas, mais coçadas, mas que acabam apenas por ser mais difíceis de lavar…
Tinha sido uma mulher bonita, roliça e de anca fácil. Por gozo e desafio, durante anos tinha assombrado os bêbados das tascas do Bairro Alto meneando a cintura ao som dos seus próprios passos, duros e secos de esperteza saloia e rápida incutida por anos e anos de conselhos maternos.
Cabelos ondulados pretos petróleo, olhos negros e tez alva, tinham-na cantado fadistas de vida escondida e estudantes em busca de prazer inconsequente. Cabelos esses que, outrora compridos, pela cintura, ciganinha de alcunha, há muito passaram a ser frisados, agora a velha usava-os curtos, com ganchos de vários tipos, e assumiam uma cor de burro quando foge, porque o preto não se pode usar para pintar as brancas que espreitavam bem juntinho do crânio. Os olhos, esses mal os via, atrás dos fundos de garrafa escorregadios que em nada ajudavam na luta diária entre os sacos de plástico e o passe social.
Agora sentava-se pesadamente nos autocarros que apanhava para ir para o serviço e para voltar para casa, cansada das pernas pesadas de anos de trabalho árduo mas honesto, sempre honesto. O corpo antes fonte de suspiros e invejas, agora vencia-a nas dores dos reumatismos e artroses.
Mas se parava numa montra, coquete olhava-se de lado, e via a jovem roliça e prazenteira e, velha, meneava a anca num andar que destoava dos sacos de plástico que carregava.

kudos

Quando se viram a terra parou. Sem volta nem retorno. Os planetas finalmente se alinharam em conjugação com o Universo e toda a Natureza reconheceu por fim que tudo o que existe é apenas composto por energia comum.
Quando se abraçaram o vento parou, as nuvens caíram e o sol abriu, sem razão racional, mas só para aquecer almas frias que precisassem de colo. As ondas pararam, os Oceanos acalmaram, sem necessidade de continuar a eterna luta, e perceberam que eram um só com os pobres grãos de areia habituados à violência de mar picado.
Quando se beijaram as árvores encheram-se de frutos porque sim, as plantas cobriram-se de flores with no rhyme or reason, as montanhas voltaram a cobrir-se de neve sem medo dos degelos, e os pássaros cantaram em uníssono porque deixara de fazer sentido qualquer desarmonia.