outro

A minha é uma história estranha. E eu sou uma coisa estranha para a contar. Mas ninguém restou que a contasse por mim.
Fui concebido numa sala de reuniões branca e luminosa, desenhos baseados no lucro que poderia trazer aos meus criadores, e não baseado no que poderia acrescentar à vida de quem me comprasse. Mas isso seria um raciocínio raro de quem sabe apenas conceber na base dos cifrões.
Mas de uma linha de montagem automatizada e esterilizada nasci, e por motivos mais emocionais que lucrativos fui levado para casa do meu dono.
Este meu dono era uma pessoa absolutamente normal, com uma vida verdadeiramente real, sem qualquer pretensão a herói ou vilão da vida alheia, nem sequer da sua. Levava-o para o escritório todos os dias, e no caminho deixava os filhos no colégio, e mais tarde no liceu. Era lavado religiosamente todos os meses, porque no parque onde passava as minhas noites havia árvores e pássaros que me atingiam por gozo, ou assim me parecia, e por vezes chovia copiosamente.
A minha seria uma história absolutamente comum se não tivesse sido escolhido para receber um raro encargo. Um dia o meu dono pegou-me a horas tardias da noite, o que desde logo não era normal. Ao invés de se sentar ao volante, ajeitar o espelho enquanto os filhos se encaixavam nas legais cadeirinhas, abriu a porta do banco de trás, ficando apoiando um braço no meu tecto a olhar para dentro. Não parecia o meu dono, parecia outra pessoa. Mas as chaves eram do meu dono, e as mãos também. Reconheceria estas mãos em qualquer parte.
Mais decidido, pegou num embrulho que trazia arrastado e, a custo, empurrou-o para cima do meu banco. De imediato um cheiro a cobre podre percorreu os meus tecidos e ventilações, infiltrando-se no motor até chegar às profundezas dos meus pneus.
O meu dono atirou a porta de trás violentamente, outro acto invulgar para este homem tão normal. Lentamente dirigiu-se ao seu banco e abriu a porta. Sentou-se e ficou uns minutos a olhar para o meu volante, Enfiou a chave na ignição e instintivamente tentei acordar. A custo, porque aquele cheiro me agoniara a injecção e envenenara o combustível. Consegui obedecer, mas aos soluços para não morrer de vez tal era a minha náusea.
De repente senti uma carícia no meu banco de trás. Reconheci a mão da minha dona, ou melhor, da dona do meu dono. Reconheceria aquelas mãos em qualquer lado, suaves e pequeninas. Morri de vez, não conseguia avançar, não entendia que cheiro nauseabundo era aquele que provinha de tão amadas mãos. Solucei ainda uma vez mais para parar de vez.
O meu dono, talvez pressentindo a minha agonia, ou talvez partilhando desta invulgar agonia conjunta, desligou-me, e chovendo copiosamente em cima do meu volante, baixinho murmurou desculpa, e atirou qualquer coisa estranha contra a própria cabeça, que voou descontrolada até ao meu vidro, onde se desfez numa enxurrada de cheiro a cobre podre encarnado.
Como disse, a minha é uma história estranha, e mais estranho é ser eu a contá-la.

porque fui a um casamento

Bem, vamos lá falar honestamente.
Em pleno ano 2010, o que é que é isto do casamento?

No tempo das nossas avós, o casamento era uma etapa da vida, tão obviamente certa como nascer, crescer ou morrer. As pessoas nasciam, cresciam, começavam a desenvolver capacidades sociais, inseriam-se numa comunidade, conheciam outras pessoas, e de entre essas mesmas pessoas, escolhiam com quem casavam e tinham filhos.
Depois educavam os filhos, os filhos começavam a ser eles mesmos seres sociais escolhiam alguém para casa e ter filhos próprios. E o ciclo era previsível e lógico.
Depois vieram as revoluções sociais. Pouco ou nada sentidos em Portugal na altura em que aconteciam, os movimentos liderados pelos baby boomers tiveram efeitos colaterais no nosso País à beira mar plantado apenas depois da nossa própria revolução, desta feita a dos cravos.
E nesse momento começaram as mudanças. Que foram muitas e, dependendo com quem se fala, boas ou más.
Vieram os divórcios em massa, revelações escandalosas das práticas extra conjugais das anteriores ínclitas gerações, surgiram as famílias alternativas compostas pelos meus, os teus e os nossos, as uniões de facto, as mães solteiras, as mães adolescentes, as interrupções voluntárias de gravidez, os planeamentos familiares, as curtes, os one night stands, os solteiros/as inveterados por escolha, os casais sem filhos por escolha, as mulheres em maioria nas universidades, a média de 1,5 filhos por mulher, e recentemente, o casamento de pessoas do mesmo sexo. Se em 1975 houve em Portugal registo de 103.125 casamentos, em 1990 houve 71.654 e em 2008 43.228, dos quais 55,6% foram não católicos. Nesse mesmo ano ocorreram 26.110 divórcios, contra 1.552 em 1975.
Em 2010, como estamos nós? Terá o casamento perdido o seu histórico sentido? Ou terá adquirido outro?
Depende com quem falarmos. O que não é de todo mau, a diversidade tem vindo a abrir-nos horizontes que, admitamos, tínhamos bem fechados. Mesmo que essa abertura seja lenta, suave, e por vezes, imperceptível a olho nu.
Se perguntarmos a um católico praticante o que é o casamento, rapidamente nos dirá que o casamento é um dos sacramentos católicos, sacramento esse através do qual a união de vida de duas pessoas é consagrada perante Deus, e o seu compromisso se torna sacrossanto exactamente por tal consagração, e como tal, “até que a morte os separe”.
Por outro lado, se estivermos a falar com um licenciado em Direito, conseguirá explicar-nos que o casamento é um contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida. Esta é a posição oficial do Estado Português sobre o casamento – um contrato, equivalente a uma escritura pública de compra de um apartamento, por exemplo.
Se por outro lado falarmos com um agnóstico não conhecedor das práticas ou teorias legais, se calhar o tema complica-se, e as respostas variarão conforme estivermos perante uma mulher ou um homem, ou ainda conforme o nível económico, cultural, social ou académico do nosso interlocutor.
De facto, se despojarmos o casamento de todas as noções religiosas, ele acaba por ser apenas consubstanciado por uma troca de papéis, ainda para mais reversível, cujo valor só pode ser baseado em emoções, nada mais.
Mas quando duas pessoas escolhem viver juntas, essas emoções base já existem com certeza: se não são religiosos e não acreditam que o casamento seja uma ligação à partida para sempre, qual o valor que tem o casamento? Uma festa? Ou uma concessão a escrutínios sócio familiares que ainda persistem na nossa sociedade?
Sim e não, dependendo das pessoas, porque obviamente essas mesmas emoções base são conceptualmente subjectivas. A única conclusão certa é que o casamento deixou de ter valor consensual e universal na sociedade Portuguesa de hoje, e passou a ser uma instituição adaptável a cada um, cuja escolha é um tema íntimo do casal, e as suas razões inerentemente subjectivas.

Para mim? É uma forma socialmente aceitável de fazer amor em público: através da festa, das alianças e da conjugação dos apelidos dos noivos, materializa-se em público o amor que os noivos sentem um pelo outro. Também me encanta a ideia de uma pertença de duas pessoas àquela empresa comum, não um ao outro, mas aos dois, ao casal.
Mas eu sou uma romântica incurável. Prática, mas romântica. E confesso que a ideia de ser princesa por um dia me delicia...