Zé Manuel chegou ao local do crime atrasado, como de costume. Com ar indiferente ao que o rodeava pôs a mão no bolso, com perícia desviando o sobretudo para o lado. Apagou o cigarro que ainda trazia na outra mão e entrou na casa onde tinha ocorrido o homicídio. Ao entrar, pensou que os homicídios eram sempre em casas como estas, anónimas, iguais umas às outras.
Dirigiu-se com passo sábio para a cozinha onde à sua espera se encontrava o corpo, já gelado e hirto dos rigores habituais. Esta era uma cozinha luminosa, toda em azulejos brancos e amarelos, de bom gosto, como aquela que a sua mulher, Maria, lhe andava a pedir há anos, mas que ultrapassava em muito o seu magro ordenado de funcionário público.
Tudo arrumado, tudo no sítio, nada indicava ser este mais um crime passional. Não havia dedadas de sangue em lado nenhum, nem se vislumbrava sequer uma vaga mancha da gordura costumeira em qualquer cozinha frequentemente utilizada. Parecia ter sido algo bem planeado. “Boa”, pensou ele animado, “este vai-me dar gozo”.
Cumprimentou com vigorosos “passou bem” o médico legista e o assistente que já se encontravam na cozinha, e perguntou-lhes se já tinham alguma conclusão quanto à hora em que o indivíduo tinha morrido. Às duas da manhã, laconicamente responderam em uníssono.
Ok. Agora vamos ver quem és. Com mestria colocou as finas luvas de látex, tirou o sobretudo e o casaco do fato, pondo ambos em cima de uma cadeira, e atirou a gravata para trás das costas, que nódoas de sangue são impossíveis de tirar e esta era a sua gravata boa. Ajoelhou-se ao lado do corpo, com cuidado para não pisar nada que pudesse ser relevante no decurso das investigações. O cadáver estava deitado de lado, quase em posição fetal. Parecia até confortável, como se estivesse só a descansar, não fosse o pormenor de estar em cima do frio linóleo. Devagar e com cuidado virou o corpo para ver a cara da vítima e teve um choque. Reconheceu-o de imediato. Era o Vasco.
Conhecera-o através da Maria num jantar, há duas semanas. Zé Manuel e Maria tinham ido jantar fora com o Vasco e com a mulher dele, que se bem se recordava chamava-se Teresa. Vasco era gestor de uma empresa da moda, bem parecido e bem-falante, e tinha ido ao jantar com ar descontraído de quem não tem problemas em escolher a roupa adequada para cada situação. Maria por sua vez tinha-o conhecido no ginásio que ambos frequentavam religiosamente.
Bolas, agora ia ter que se escusar da investigação. E ele que andava ultimamente ocupado apenas com míseras queixas de injúrias e crimezinhos do género… Este homicídio sempre seria um bom desafio. Se calhar não ia dizer nada já, ia aproveitar só mais um bocadinho até dizer que se tinha que escusar.
Levantou-se rapidamente e voltou ao hall de entrada da casa, onde estavam em cima da mesa de apoio, como seria de esperar, as chaves de casa e o telemóvel de Vasco. Em voz alta perguntou se alguém tinha avisado o parente mais próximo e uma voz longínqua respondeu que sim, a mulher dele estava a caminho do aeroporto. Era a sua oportunidade. Quando ela chegasse, olharia para ela e fingiria que só se tinha apercebido nesse momento que conhecia a vítima.
Rapidamente pegou no telemóvel do Vasco e foi verificar as últimas chamadas recebidas. De repente o seu coração parou. O último número marcado era o de sua casa... Sem perceber bem o que fazia ligou para o voice mail, tentando manter uma postura normal com a ajuda discreta da mesa de apoio, enquanto se debatia contra invisíveis murros nos pulmões que não o deixavam respirar.
Sem acreditar no que ouvia, percebeu que se estava a ouvir a si mesmo, numa versão metálica da sua voz, a ameaçar de morte a vítima se ele não acabasse o romance que, pelos vistos, estava a ter com a Maria. Agarrou-se à mesa da entrada com força para acabar com as tonturas que o rodeavam tortuosamente, mas não conseguiu, e acabou por cair no chão sem forças.
Sobressaltado acordou. Eram duas da manhã. Olhou à volta, estava na sua cama. Era funcionário público, é verdade, mas de uma repartição das finanças, não da polícia judiciária. Mas era mesmo casado com a Maria.
E tinha mesmo que arranjar coragem para lhe pedir para ir um bocadinho menos ao ginásio, a ver se ele voltava a dormir decentemente...
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