Saiu de casa depois do almoço comido cerimoniosamente à mesa da casa de jantar, enquanto desfolhava uma revista de 1960, ano em que se tinha casado com aquele que foi o seu grande e único amor. Morto na guerra colonial, não lhe tinha dado tempo de ser sua mulher ou mãe dos seus filhos. Deste casamento apressadamente acabado restou-lhe o luto pesado usado até hoje com o orgulho de quem não quer esquecer a felicidade que um dia sentiu.
Dirigiu-se em passos falsos para o café da esquina, onde já lhe conheciam os hábitos, e sentou-se na primeira mesa da porta. Café escuro mas bem frequentado, de funcionários simpáticos e clientes solitários, com paredes preenchidas de caixas de chocolates empoeiradas que exibiam marcas já desaparecidas há muito.
Pediu o habitual, o café, o copo de água e o pastel de nata, e assim se iniciou a sua rotina da tarde. Cada cliente que entrava era perscrutado de alto a baixo e, se não reprovasse em tão real exame, era saudado com um “bom dia vizinho”, porque ali todos eram vizinhos, e com uma descrição detalhada do seu dia até essa hora. Como o café era maioritariamente frequentado por clientes habituais, este ritual era aceite e recebido de bom grado, que a vida é madrasta e os filhos se os houve há muito se foram.
À hora do fecho ia devagar para casa, equilibrando-se na sua bengala, arrastando os pés para não arriscar cair na traiçoeira calçada lisboeta, murmurando ainda pequenos acontecimentos do café para quem a quisesse ouvir.
Um dia não saiu de casa a seguir ao almoço. Na verdade, um dia nem se levantou. Se se tivesse levantado teria assistido, desgostosa, ao derrubar da porta de sua casa pelos bombeiros do bairro, chamados a acorrer à senhora da mesa 1 pelo dono do café.
Mas não se levantou. Morreu feliz a dormir, enquanto sonhava com o dia do seu casamento em 1960. E foi encontrada com um grande sorriso nos lábios, coisa que nunca se lhe tinha visto em vida.
Gostei! :)
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