lost words
The angel opens her eyes just to close them swiftly in denial of what have we done to this Garden of Eden
mais verdades absolutas inconsequentes
Regra n.º 1: As mulheres nunca podem dar o primeiro passo. Se um homem vem ter contigo num bar e quer conhecer-te, ignora. Só podes mostrar interesse se conheceres alguém que o conheça.
Regra n.º 2: Nunca dormir com um homem na primeira vez que o conheces. Play hard to get, mesmo se até te apetecer ir para a cama com ele.
Regra n.º 3: Se saíste com um homem, não lhe ligues no dia a seguir. Tem que ser ele a ligar. Senão ligar, que dizer que não está interessado em ter uma relação séria contigo, e isso é a única relação que podes querer.
Regra n.º 4: Good girls don’t have one night stands. Se queres ser o tipo de mulher que os homens apresentam às mães, só podes ter relações sérias.
Regra n.º 5: Numa relação, nunca podes ser tu a querer sexo. E mesmo que queiras, play hard to get again. Fá-lo lutar pelo teu corpo constantemente.
Regra n.º 6: Nunca sejas a primeira a dizer “Eu amo-te”. Além de mostrar que és fraca, carente, é foleiro dizer “Eu amo-te” em português. Arranja um eufemismo qualquer quando ele já tiver dito primeiro.
Regra n.º 7: Se ele te perguntar com quantos homens já dormiste, mente. Nunca tiveste muitos.
Regra n.º 8: Nunca mostres que és inteligente, e sobretudo mais inteligente que ele. Ri-te sempre das piadas dele, mesmo que as conheças desde o dia em que falaste com ele pela primeira vez.
Regra n.º 9: Não vás viver com ele. Se viveres com ele, ele nunca se vai querer casar, e esse é o objectivo último de todas as relações sérias a partir dos 20 anos.
Regra n.º 10: Mantém os jogos todos durante a relação, mesmo que seja séria e duradoura – nunca atendas o telefone à primeira, nunca ligues demasiadas vezes, nunca digas “Eu amo-te” muitas vezes (ou o seu equivalente), nunca te mostres demasiado feliz por estar com ele, façam muitos programas fora de casa para manter a vida a dois interessante.
Estas são algumas das regras que todas as mulheres ficam a conhecer a fundo a partir da adolescência. Aliás, o que parece acontecer é que em termos de relações, o ser humano dito civilizado nunca sai de um estado de permanente adolescência, estado esse em que tem que planear, racionalizar cada passo, pensar nas consequências sociais de cada frase ou atitude, e sobretudo, nunca dizer a verdade ou agir livremente.
Existem livros vários sobre como “agarrar um homem” ou “manter o interesse na relação”. A maior parte deles não nos diz o mais essencial: qualquer relação humana serve o propósito de nos completar de maneira a evoluírmos conjuntamente e, a curto prazo, sermos felizes. Se pensarmos demais sobre matters of the heart, nada faz muito sentido. E claro, se analisarmos uma relação que não correu como gostávamos depois de ela acabar, haverá sempre milhares de situações em que achamos que devíamos ter agido de outra forma. Mas a beleza da vida, para mim, é termos agido da melhor forma que sabíamos e queríamos no momento em que agimos. E, de qualquer maneira, como ouvi num filme, falar sobre amor é como dançar ao som da arquitectura.
Regra n.º 2: Nunca dormir com um homem na primeira vez que o conheces. Play hard to get, mesmo se até te apetecer ir para a cama com ele.
Regra n.º 3: Se saíste com um homem, não lhe ligues no dia a seguir. Tem que ser ele a ligar. Senão ligar, que dizer que não está interessado em ter uma relação séria contigo, e isso é a única relação que podes querer.
Regra n.º 4: Good girls don’t have one night stands. Se queres ser o tipo de mulher que os homens apresentam às mães, só podes ter relações sérias.
Regra n.º 5: Numa relação, nunca podes ser tu a querer sexo. E mesmo que queiras, play hard to get again. Fá-lo lutar pelo teu corpo constantemente.
Regra n.º 6: Nunca sejas a primeira a dizer “Eu amo-te”. Além de mostrar que és fraca, carente, é foleiro dizer “Eu amo-te” em português. Arranja um eufemismo qualquer quando ele já tiver dito primeiro.
Regra n.º 7: Se ele te perguntar com quantos homens já dormiste, mente. Nunca tiveste muitos.
Regra n.º 8: Nunca mostres que és inteligente, e sobretudo mais inteligente que ele. Ri-te sempre das piadas dele, mesmo que as conheças desde o dia em que falaste com ele pela primeira vez.
Regra n.º 9: Não vás viver com ele. Se viveres com ele, ele nunca se vai querer casar, e esse é o objectivo último de todas as relações sérias a partir dos 20 anos.
Regra n.º 10: Mantém os jogos todos durante a relação, mesmo que seja séria e duradoura – nunca atendas o telefone à primeira, nunca ligues demasiadas vezes, nunca digas “Eu amo-te” muitas vezes (ou o seu equivalente), nunca te mostres demasiado feliz por estar com ele, façam muitos programas fora de casa para manter a vida a dois interessante.
Estas são algumas das regras que todas as mulheres ficam a conhecer a fundo a partir da adolescência. Aliás, o que parece acontecer é que em termos de relações, o ser humano dito civilizado nunca sai de um estado de permanente adolescência, estado esse em que tem que planear, racionalizar cada passo, pensar nas consequências sociais de cada frase ou atitude, e sobretudo, nunca dizer a verdade ou agir livremente.
Existem livros vários sobre como “agarrar um homem” ou “manter o interesse na relação”. A maior parte deles não nos diz o mais essencial: qualquer relação humana serve o propósito de nos completar de maneira a evoluírmos conjuntamente e, a curto prazo, sermos felizes. Se pensarmos demais sobre matters of the heart, nada faz muito sentido. E claro, se analisarmos uma relação que não correu como gostávamos depois de ela acabar, haverá sempre milhares de situações em que achamos que devíamos ter agido de outra forma. Mas a beleza da vida, para mim, é termos agido da melhor forma que sabíamos e queríamos no momento em que agimos. E, de qualquer maneira, como ouvi num filme, falar sobre amor é como dançar ao som da arquitectura.
assim-assim
Deixo a água quente escorrer-me pelos cabelos, costas, cara, até se afundar nos meus pés. Tento imaginar que cada gota de água que percorre o meu corpo é as tuas mãos, a tua boca, que de cada vez que inspiro é o teu cheiro que sinto... Tenho que me apoiar na parede para não cair, tonta de desejo criado mas não consumado.
Nada disto faz sentido, na realidade. Obrigar seres nómadas a se ancorarem mutuamente é absurdo. Apelo ao meu cérebro para invadir a minha alma, conquistar pensamentos que me afundam e hastear bandeira sobre sentimentos descontrolados.
É inútil...
Nada disto faz sentido, na realidade. Obrigar seres nómadas a se ancorarem mutuamente é absurdo. Apelo ao meu cérebro para invadir a minha alma, conquistar pensamentos que me afundam e hastear bandeira sobre sentimentos descontrolados.
É inútil...
subjectividades
Mensagem de amor – versão técnica:
Serve a presente missiva para informar V. Exa. do seguinte, considerando as inglórias tentativas de contacto telefónico que foram encetadas hoje pela minha pessoa. Com efeito, por 3 (três) vezes lhe tentei ligar para o seu número de telemóvel hoje, dia 25 (vinte e cinco) do mês de Março do ano de 2010. Infelizmente não me foi possível chegar a contacto com V. Exa., debalde das supra referidas tentativas, tendo sido reencaminhado sempre para a respectiva caixa de mensagens de voz do telemóvel de V. Exa.
Assim, aproveitando esta oportunidade para lhe transmitir os meus mais calorosos sentimentos e respeitosos cumprimentos, tenho o gosto de lhe informar que a sua ausência tem sido deveras notada pelo ora signatário, pelo que mui gentilmente lhe solicito que me contacte com a maior brevidade possível, assim que adequado.
Na expectativa do seu contacto e no aguardo dos seus adicionais comentários, subscrevo-me com os meus mais sinceros e cordiais sentimentos,
Mensagem de amor – versão realista
Tentei ligar-te, não atendes o telemóvel. Tenho saudades. Liga-me assim que conseguires. Beijinhos!
Mensagem de amor – versão Morangos com Açúcar
Ñ atendes :( Liga! Bjs! ;)
Mensagem de amor – versão that’s it!
Meu amor, metade do meu ser, onde andas que não estás comigo? Com quem falas que não comigo? A minha alma chama por ti, o meu corpo geme o teu nome, oferece-me a honra de um teu olhar, ou palavra. Amo-te infinitamente mais do que seria possível.
Serve a presente missiva para informar V. Exa. do seguinte, considerando as inglórias tentativas de contacto telefónico que foram encetadas hoje pela minha pessoa. Com efeito, por 3 (três) vezes lhe tentei ligar para o seu número de telemóvel hoje, dia 25 (vinte e cinco) do mês de Março do ano de 2010. Infelizmente não me foi possível chegar a contacto com V. Exa., debalde das supra referidas tentativas, tendo sido reencaminhado sempre para a respectiva caixa de mensagens de voz do telemóvel de V. Exa.
Assim, aproveitando esta oportunidade para lhe transmitir os meus mais calorosos sentimentos e respeitosos cumprimentos, tenho o gosto de lhe informar que a sua ausência tem sido deveras notada pelo ora signatário, pelo que mui gentilmente lhe solicito que me contacte com a maior brevidade possível, assim que adequado.
Na expectativa do seu contacto e no aguardo dos seus adicionais comentários, subscrevo-me com os meus mais sinceros e cordiais sentimentos,
Mensagem de amor – versão realista
Tentei ligar-te, não atendes o telemóvel. Tenho saudades. Liga-me assim que conseguires. Beijinhos!
Mensagem de amor – versão Morangos com Açúcar
Ñ atendes :( Liga! Bjs! ;)
Mensagem de amor – versão that’s it!
Meu amor, metade do meu ser, onde andas que não estás comigo? Com quem falas que não comigo? A minha alma chama por ti, o meu corpo geme o teu nome, oferece-me a honra de um teu olhar, ou palavra. Amo-te infinitamente mais do que seria possível.
Então...?
Porque é que estás aqui, assim, a olhar para mim? Já me viste antes? Onde? Conheces-me de onde, diz! Não te acanhes, conta-me tudo!
O que queres? Diz já, não percas tempo! Não há tempo a perder, o tempo passa por nós de fugida, corridinha de coelho apressado!
Quem és, ao menos sabes? Deves saber, tens que saber! Como é que não sabes? Mas que raio andaste tu a fazer tantos anos que não sabes quem és!
Mas mais importante, és feliz? Não sabes? Deixa-te estar então, não te canses. Vive a tua vidinha, conformado conformista… contentinho, não é? Leve levezinho, como deve ser…
Então vá! A gente vê-se por aí…
O que queres? Diz já, não percas tempo! Não há tempo a perder, o tempo passa por nós de fugida, corridinha de coelho apressado!
Quem és, ao menos sabes? Deves saber, tens que saber! Como é que não sabes? Mas que raio andaste tu a fazer tantos anos que não sabes quem és!
Mas mais importante, és feliz? Não sabes? Deixa-te estar então, não te canses. Vive a tua vidinha, conformado conformista… contentinho, não é? Leve levezinho, como deve ser…
Então vá! A gente vê-se por aí…
Associações
E agora voltar para o que era antes, ou antes o que nunca foi, ou melhor o que seria porventura se tudo não tivesse acontecido depois, a seguir ao que não foi mas devia ter sido…
Dar razão a quem não a tem ou quem luta pela razão sem qualquer sentido não tem lógica mas convences-te que é preciso para aplacar espíritos inquietos, para não ouvir o que nunca se deveria dizer. Responder a inquietudes alheias para espalhar tranquilidades irrequietas, apenas porque sim.
Sentir demais, pensar demais, amar demais, temer demais, cansada demais para aproveitar tudo o que tens em ti… Sinceridades frágeis como sóis de inverno não podem ser espezinhadas impunemente. Porquê deixares-te atingir por balas sombrias de desejo não cumprido, vontades reprimidas por incontroláveis necessidades de pertença solitária, invisível no cimento frio insensível…
Máscaras insondáveis, perguntas deixadas no ar, músicas que não se cantam por vergonha de estranhos que nunca se conhecerão, mãos vazias que deviam estar cheias de alma, dores dificilmente apaziguadas…
Busca de descanso cerebral de corações interligados, simbiótico crescimento adolescente com medo de ser adulto porque os dias se tornam iguais, repetitivos em rotineiras monotonias sem surpresas…
Basta!
Sê criança enquanto podes, don’t go gently into the night*!
*Dylan Thomas
Dar razão a quem não a tem ou quem luta pela razão sem qualquer sentido não tem lógica mas convences-te que é preciso para aplacar espíritos inquietos, para não ouvir o que nunca se deveria dizer. Responder a inquietudes alheias para espalhar tranquilidades irrequietas, apenas porque sim.
Sentir demais, pensar demais, amar demais, temer demais, cansada demais para aproveitar tudo o que tens em ti… Sinceridades frágeis como sóis de inverno não podem ser espezinhadas impunemente. Porquê deixares-te atingir por balas sombrias de desejo não cumprido, vontades reprimidas por incontroláveis necessidades de pertença solitária, invisível no cimento frio insensível…
Máscaras insondáveis, perguntas deixadas no ar, músicas que não se cantam por vergonha de estranhos que nunca se conhecerão, mãos vazias que deviam estar cheias de alma, dores dificilmente apaziguadas…
Busca de descanso cerebral de corações interligados, simbiótico crescimento adolescente com medo de ser adulto porque os dias se tornam iguais, repetitivos em rotineiras monotonias sem surpresas…
Basta!
Sê criança enquanto podes, don’t go gently into the night*!
*Dylan Thomas
talvez saudades da terra que nunca tive
Quando vim da serra cá para baixo tinha 13 anos. Nunca tinha visto o mar, só as ribeiras ao pé de casa, onde o meu pai levava as ovelhas a pastar quando era cachopa, depois ficou sem as ovelhas e teve que ir trabalhar para a fábrica, onde se embalava a água. Na altura não entendia porque é que a água era embalada assim, então as pessoas não podiam ir buscar a água às fontes como nós íamos? Ou abrir furos como os meus pais fizeram quando finalmente puderam construir a nossa casinha lá ao pé da aldeia? Depois de vir para a cidade grande percebi, aqui não há terra para furar, nem fontes de onde brote água tão límpida como as das nascentes na serra, onde podemos mergulhar a cara toda nos dias de verão e sentir o líquido gelado escorrer-nos pelo pescoço…
Depois de vir para a cidade grande tive que me acostumar a coisas tão estranhas como a ir buscar ao supermercado alfaces já ensacadas e fininhas fininhas como se fossem feitas daquele papel vegetal com que a minha mãe fazia as lérias lá em casa, ensinada pela minha tia cozinheira do convento. Acostumei-me também, apesar dos meus lamentos, àqueles papo secos que se desfazem mal se lhes pega, de crosta mole e meia empapada… Ainda tenho tantas saudades daquele pão áspero que a minha mãe tinha sempre pronto de manhãzinha, nem sei bem se aquela santa alma alguma vez dormiu. Também tenho muitas saudades das festas lá em casa, na consoada era ver a minha mãe com as minhas tias e a minha avó, saiotes em rodopio contínuo como nos bailes dos sábados, atarefadas à volta do velhinho fogão a lenha entre sopas, bacalhau, filhozes e afins...
Mas o que nunca me acostumei aqui na cidade grande é a esta pedra gelada da calçada que esconde a terra como se aqui não fossemos todos animais como os outros…
Depois de vir para a cidade grande tive que me acostumar a coisas tão estranhas como a ir buscar ao supermercado alfaces já ensacadas e fininhas fininhas como se fossem feitas daquele papel vegetal com que a minha mãe fazia as lérias lá em casa, ensinada pela minha tia cozinheira do convento. Acostumei-me também, apesar dos meus lamentos, àqueles papo secos que se desfazem mal se lhes pega, de crosta mole e meia empapada… Ainda tenho tantas saudades daquele pão áspero que a minha mãe tinha sempre pronto de manhãzinha, nem sei bem se aquela santa alma alguma vez dormiu. Também tenho muitas saudades das festas lá em casa, na consoada era ver a minha mãe com as minhas tias e a minha avó, saiotes em rodopio contínuo como nos bailes dos sábados, atarefadas à volta do velhinho fogão a lenha entre sopas, bacalhau, filhozes e afins...
Mas o que nunca me acostumei aqui na cidade grande é a esta pedra gelada da calçada que esconde a terra como se aqui não fossemos todos animais como os outros…
jogo
Quando saiu do consultório eram três da tarde de um dia solarengo da capital. O calor desta cidade lacrada atingiu-o com um soco violento no queixo. Atordoado procurou de olhos semicerrados os seus óculos escuros, que pôs nos olhos sôfrego de sombra e silêncio.
O médico que tinha acabado de consultar tinha-o informado, ‘com muito pesar’, que tinha encontrado um corpo estranho na sua cabeça, uma coisa que nada tinha a ver com ele, com os seus sentimentos ou memórias. Tinha-lhe dito que aquele ser alienígena do seu corpo o mataria no prazo máximo de um mês. Melhor, tinha-lhe dito que ele tinha um mês de vida.
‘Engraçadinho o médico!’, pensou ele, ‘terá alguma bola de cristal? Porquê um mês quando eu posso morrer antes? Posso ser atropelado por este carro que aí vem a descer a rua’ e pôs um pé na estrada, devagar, sem pressas. ‘Ou posso morrer engasgado com o bife que vou comer logo à noite. O que lhe dá tantas certezas que só vou morrer daqui a um mês? É que essa certeza é mais do que alguma vez tive. Nunca soube se não ia morrer no segundo a seguir por alguma razão desconhecida. Portanto, se me afirmam com toda a certeza que só morro daqui a um mês, isso é mais do que eu tinha antes.’
E com esse pensamento tirou o pé da estrada, voltou para o passeio e foi atravessar a rua na passadeira.
O médico que tinha acabado de consultar tinha-o informado, ‘com muito pesar’, que tinha encontrado um corpo estranho na sua cabeça, uma coisa que nada tinha a ver com ele, com os seus sentimentos ou memórias. Tinha-lhe dito que aquele ser alienígena do seu corpo o mataria no prazo máximo de um mês. Melhor, tinha-lhe dito que ele tinha um mês de vida.
‘Engraçadinho o médico!’, pensou ele, ‘terá alguma bola de cristal? Porquê um mês quando eu posso morrer antes? Posso ser atropelado por este carro que aí vem a descer a rua’ e pôs um pé na estrada, devagar, sem pressas. ‘Ou posso morrer engasgado com o bife que vou comer logo à noite. O que lhe dá tantas certezas que só vou morrer daqui a um mês? É que essa certeza é mais do que alguma vez tive. Nunca soube se não ia morrer no segundo a seguir por alguma razão desconhecida. Portanto, se me afirmam com toda a certeza que só morro daqui a um mês, isso é mais do que eu tinha antes.’
E com esse pensamento tirou o pé da estrada, voltou para o passeio e foi atravessar a rua na passadeira.
who is the crazy one?
- E já agora, porque é que acabei assim, hás-de me explicar. Velho, feio e pobre, sempre tão sozinho – murmurou o velho, de cabeça baixa, olhos fixos nos pés envoltos em farrapos igualmente velhos que um dia terão sido, imaginemos, sapatos.
- Já te disse que eu não contribuí para isso. Foi tudo escolha tua. Já andámos às voltas com esta conversa, para quê é que me perguntas sempre o mesmo?
- Esperança que me digas alguma coisa diferente... Isto não pode ter sido tudo escolha minha... Não me lembro de ter escolhido beber até à exaustão todos os dias, andar pelas ruas em farrapos a pedir esmolinha, faça frio ou sol, a eternos transeuntes a quem só vejo as pernas, com sorte as mãos... Não escolhi ter sido esquecido pelos meus, lá da terra... – respondeu o velho, tristonho enquanto coça a barba castanha não de cor, mas de sujidade já inata.
- Ah não? E quando vieste para a cidade trabalhar? Não foste tu que escolheste não ir acabar a escola à noite? Bem que me lembro das vezes que te tentei dizer isso, nunca ouviste. E quando batias na tua Maria, quantas vezes não te avisei que ela qualquer dia te deixava? Também nunca ouviste... Sempre bêbado, apesar de todos os esforços que fiz para afastar a garrafa da tua boca. Preguiçoso ingrato! Velho casmurro! Tu escolheste tudo o que te era mais fácil para ti em todas as alturas!
- Tens razão... – disse o velho, começando a chorar inconsolavelmente, aquietando-se aos poucos enquanto se embalava para a frente e para trás. – Mas estou tão sozinho... Ninguém para falar...
- Tens-me a mim! Nunca te falhei pois não? Porque é que te ia falhar agora?
- Não percebo porque é que está toda a gente a olhar para nós.... – disse de repente o velho finalmente levantando os olhos do chão – Achas que temos alguma coisa na barba?
- Não ligues, já sabes como é a gente. Anda mas é daí que temos que sair nesta paragem
E assim lá foi o velho, saindo do metro cambaleando no seu casaco comprido coçado do tempo e da fria calçada onde se deitava, sempre a falar para o enorme vazio que o rodeava.
- Já te disse que eu não contribuí para isso. Foi tudo escolha tua. Já andámos às voltas com esta conversa, para quê é que me perguntas sempre o mesmo?
- Esperança que me digas alguma coisa diferente... Isto não pode ter sido tudo escolha minha... Não me lembro de ter escolhido beber até à exaustão todos os dias, andar pelas ruas em farrapos a pedir esmolinha, faça frio ou sol, a eternos transeuntes a quem só vejo as pernas, com sorte as mãos... Não escolhi ter sido esquecido pelos meus, lá da terra... – respondeu o velho, tristonho enquanto coça a barba castanha não de cor, mas de sujidade já inata.
- Ah não? E quando vieste para a cidade trabalhar? Não foste tu que escolheste não ir acabar a escola à noite? Bem que me lembro das vezes que te tentei dizer isso, nunca ouviste. E quando batias na tua Maria, quantas vezes não te avisei que ela qualquer dia te deixava? Também nunca ouviste... Sempre bêbado, apesar de todos os esforços que fiz para afastar a garrafa da tua boca. Preguiçoso ingrato! Velho casmurro! Tu escolheste tudo o que te era mais fácil para ti em todas as alturas!
- Tens razão... – disse o velho, começando a chorar inconsolavelmente, aquietando-se aos poucos enquanto se embalava para a frente e para trás. – Mas estou tão sozinho... Ninguém para falar...
- Tens-me a mim! Nunca te falhei pois não? Porque é que te ia falhar agora?
- Não percebo porque é que está toda a gente a olhar para nós.... – disse de repente o velho finalmente levantando os olhos do chão – Achas que temos alguma coisa na barba?
- Não ligues, já sabes como é a gente. Anda mas é daí que temos que sair nesta paragem
E assim lá foi o velho, saindo do metro cambaleando no seu casaco comprido coçado do tempo e da fria calçada onde se deitava, sempre a falar para o enorme vazio que o rodeava.
palavras que gostava de ter escrito
"... o amor é como uma obra de arte, uma sinfonia à qual não se podem acrescentar outros sons sem a deturpar e destruir." Francesco Alberoni
stop!
Tudo passa, tudo torna, tudo vira, tudo acaba, mas tudo começa de novo outra vez, e depois passa, torna, vira, acaba para começar de novo mais depressa, sem tempo para pensar, parar para escutar, sentir-te a ti, a mim, sentir os outros à nossa volta que rodopiam sem parar sem volta nem torna nem porquê nem porém, não penses, não pares, faz, produz, consome, come, compra, executa, realiza, não esqueças que tens que ser, fazer e parecer tudo o que todos querem sem excepção nem porquês nem porém.
Ou então não.
Pára. Respira. Olha à tua volta. Vês-me?
Ou então não.
Pára. Respira. Olha à tua volta. Vês-me?
individualidades uniformes
Acordo de manhã todos os dias à mesma hora. Manhãzinha bem cedo. Levanto-me rapidamente ao primeiro toque do despertador. Ponho os chinelos, que deixo sempre à noite bem alinhados ao lado da cama, ao nível onde os meus pés aterram quando me levanto. Visto o roupão estendido sobre a cadeira ao lado da cama, e imediatamente abro a janela. Não sinto o frio entrar pela gola do roupão, através do meu pescoço, chegando até às minhas costas depressa demais. É tudo uma questão de força mental, nada mais. O frio é psicológico.
Faço a cama rapidamente, e olho em volta para me certificar que o quarto fica bem arrumado. Não que seja fácil desarrumá-lo, os poucos pertences que tenho resumem-se a uma cama individual, de metal, uma cadeira de plástico branca, daquelas de jardim, herdada já nem sei de quem, um candeeiro de plástico também ele branco, descartável como qualquer outro produto para consumo das massas, e um mísero despertador digital.
Com passos ordenados vou à cozinha, onde ponho o café a fazer na velha moka dos meus Pais. Abrindo a porta das traseiras encontro pendurado, como é usual, os dois diários papo-secos encomendados semanalmente na padaria da esquina, a 10 cêntimos cada um. Congelo um para o jantar e como o outro, com manteiga, acompanhado de um morno café com leite.
Lavo a loiça e seco-a rapidamente. Tiro para fora o jantar de hoje, sempre para uma pessoa só.
Tomo um duche rápido, não mais que dois minutos, secando-me à toalha propositadamente áspera para acordar. Faço a barba, lavo os dentes, penteio o cabelo e visto o fato azul escuro. Não uso perfume, na minha cabeça isso é coisa de casal, de que nunca fiz parte.
Agarro no telemóvel, nos óculos escuros comprados na promoção do hipermercado, no porta moedas e nas chaves de casa e saio de casa, trancando a porta de imediato.
Dirijo-me com passos rápidos para a paragem do autocarro.
Será que é hoje que algo diferente me acontece?
Faço a cama rapidamente, e olho em volta para me certificar que o quarto fica bem arrumado. Não que seja fácil desarrumá-lo, os poucos pertences que tenho resumem-se a uma cama individual, de metal, uma cadeira de plástico branca, daquelas de jardim, herdada já nem sei de quem, um candeeiro de plástico também ele branco, descartável como qualquer outro produto para consumo das massas, e um mísero despertador digital.
Com passos ordenados vou à cozinha, onde ponho o café a fazer na velha moka dos meus Pais. Abrindo a porta das traseiras encontro pendurado, como é usual, os dois diários papo-secos encomendados semanalmente na padaria da esquina, a 10 cêntimos cada um. Congelo um para o jantar e como o outro, com manteiga, acompanhado de um morno café com leite.
Lavo a loiça e seco-a rapidamente. Tiro para fora o jantar de hoje, sempre para uma pessoa só.
Tomo um duche rápido, não mais que dois minutos, secando-me à toalha propositadamente áspera para acordar. Faço a barba, lavo os dentes, penteio o cabelo e visto o fato azul escuro. Não uso perfume, na minha cabeça isso é coisa de casal, de que nunca fiz parte.
Agarro no telemóvel, nos óculos escuros comprados na promoção do hipermercado, no porta moedas e nas chaves de casa e saio de casa, trancando a porta de imediato.
Dirijo-me com passos rápidos para a paragem do autocarro.
Será que é hoje que algo diferente me acontece?
declaração
Tenho tido medo, muito medo de ter perdido a inspiração. Depois apercebi-me, ao olhar para ti, que não a tinha perdido, tinha simplesmente concentrado a minha atenção noutra beleza, uma que não precisa de palavras para ser sentida.
verdadezinha absoluta
Há histórias que se lêem para saborear palavras, e há palavras que se lêem para entender uma história.
a máquina
Como era possível serem apenas três da tarde e já estar tão cansada... Não era só um estado de saturação emocional pela falta de sentido do seu dia a dia (que não se lembrava de ter escolhido activamente), mas mesmo fisicamente cansada.
Com um suspiro profundo ajeitou a carteira debaixo do cotovelo, há sempre umas corjinhas de gatunos nas estações de metro, que nos apanham desprevenidas para tomar como deles o que nos custou tanto a ganhar...
Enfim, era a vida como ela era, não podia fazer nada para a mudar...
Chegada às escadas rolantes da estação de metro percebeu que as escadas ascendentes estavam avariadas, apenas funcionando as escadas descendentes. “que raio de lógica”, pensou ela, resmungando em murmúrios sobressaltados, “agora ter que subir estes degraus todos, com a carteira e a pasta mais as compras...”.
Bem, lá tinha mesmo que ser, o que é que ela ia fazer, não havia elevador e não sabia a quem se queixar.
Começou a subir, primeiro com alguma energia, resquícios de cafés matinais em excesso, depois mais devagar, até chegar ao ponto de ir subindo degrau a degrau, agarrada ao corrimão, arfante pecadora de cigarros fumados furtivamente. Olhando para cima percebeu que alguma coisa estava errada, mas não conseguia perceber o quê. Enquanto a parte direita do túnel da estação, onde se encontravam as escadas rolantes descendentes, estavam bem iluminadas, o lado esquerdo, o das escadas ascendentes, encontrava-se escurecido, e ao fundo do túnel só conseguia ver costas de pessoas paradas.
Quando finalmente chegou ao topo das escadas, ofegante, encaixou-se naquela barreira de casacos, à espera de passar e poder ir trabalhar, que estava a ficar atrasada. Mas que remédio há que respeitar as filas, não podia começar a empurrar toda a gente.
Devagar a multidão avançava, em uníssono, como um muro arrastado por correntes sobrenaturais. Não se ouvia um ai. Apenas o lento arrastar dos pés quando se ganhavam alguns milímetros de espaço à frente. De olhos baixos, a multidão só via os pés da pessoa à sua frente.
Foi por isso que ninguém se queixou de levar um tiro na fronte quando a fila seguinte do muro chegava à porta da estação. Os jornais chamaram-lhe uma inteligente medida de controlo do sobrepovoamento do país. Foram louvados os esforços do exército e sobretudo a contenção com que tudo decorreu.
O que escapou a todos os comentadores e politólogos foi que ali não se mataram seres humanos, apenas componentes irracionais de uma bem oleada máquina.
Com um suspiro profundo ajeitou a carteira debaixo do cotovelo, há sempre umas corjinhas de gatunos nas estações de metro, que nos apanham desprevenidas para tomar como deles o que nos custou tanto a ganhar...
Enfim, era a vida como ela era, não podia fazer nada para a mudar...
Chegada às escadas rolantes da estação de metro percebeu que as escadas ascendentes estavam avariadas, apenas funcionando as escadas descendentes. “que raio de lógica”, pensou ela, resmungando em murmúrios sobressaltados, “agora ter que subir estes degraus todos, com a carteira e a pasta mais as compras...”.
Bem, lá tinha mesmo que ser, o que é que ela ia fazer, não havia elevador e não sabia a quem se queixar.
Começou a subir, primeiro com alguma energia, resquícios de cafés matinais em excesso, depois mais devagar, até chegar ao ponto de ir subindo degrau a degrau, agarrada ao corrimão, arfante pecadora de cigarros fumados furtivamente. Olhando para cima percebeu que alguma coisa estava errada, mas não conseguia perceber o quê. Enquanto a parte direita do túnel da estação, onde se encontravam as escadas rolantes descendentes, estavam bem iluminadas, o lado esquerdo, o das escadas ascendentes, encontrava-se escurecido, e ao fundo do túnel só conseguia ver costas de pessoas paradas.
Quando finalmente chegou ao topo das escadas, ofegante, encaixou-se naquela barreira de casacos, à espera de passar e poder ir trabalhar, que estava a ficar atrasada. Mas que remédio há que respeitar as filas, não podia começar a empurrar toda a gente.
Devagar a multidão avançava, em uníssono, como um muro arrastado por correntes sobrenaturais. Não se ouvia um ai. Apenas o lento arrastar dos pés quando se ganhavam alguns milímetros de espaço à frente. De olhos baixos, a multidão só via os pés da pessoa à sua frente.
Foi por isso que ninguém se queixou de levar um tiro na fronte quando a fila seguinte do muro chegava à porta da estação. Os jornais chamaram-lhe uma inteligente medida de controlo do sobrepovoamento do país. Foram louvados os esforços do exército e sobretudo a contenção com que tudo decorreu.
O que escapou a todos os comentadores e politólogos foi que ali não se mataram seres humanos, apenas componentes irracionais de uma bem oleada máquina.
sereia suburbana
Lá ia ela pelo terminal do metro, a abanar a anca como se ainda estivesse na praia, ponderadamente inconsciente do efeito que causava ao passar, aliciante odor de sol e mar que se espalhava pelas alvas catacumbas. Ia murmurando entre dentes uma qualquer música que egoisticamente ouvia, levantando por vezes os olhos encarnados do sal, devagar, sem pressas.
Entrou no comboio à minha frente, ficou em pé, encostada ao poste, flirtando com as pulseiras várias que trazia nos pulsos e com os longos cabelos que lhe caíam pelo peito.
Senti-me completamente hipnotizado por tanta ingénua perversão, não conseguia tirar os olhos desta sereia suburbana, certamente oriunda dos meus mais íntimos pesadelos, que se mantinha altiva e alheia ao meu insidioso exame.
De repente, sem qualquer espécie de aviso prévio, as luzes do comboio baixaram para permanecermos numa acolhedora penumbra, e a carruagem encheu-se de fumo rasteirinho. Ficámos só nós os dois, o mundo tinha desaparecido, e o comboio andava cada vez mais depressa, sem sinal de preocupação com eventuais paragens.
Ela olhou para mim, desta vez de frente, e a música que só ela ouvia ecoou inesperadamente nos meus ouvidos, enquanto ela languidamente mexia no cabelo, atirando os longos cachos para trás das costas, sem nunca desviar o seu olhar sonolento do meu. Com uma mão no poste começou a dançar, contorcendo-se só para mim, em poses lentas, sem pressas.
Largou o poste e pé ante pé, no mesmo ritmo suave, dirigiu-se a mim, pousando uma mão sobre a minha perna, a outra no meu ombro, aproximando a boca sabor a cereja do meu ouvido, e murmurou roucamente “acorda”...
- Acorda! É a nossa paragem!
Lá estava ela, à minha frente. Envergonhado da triste figura que sem dúvida teria feito a sonhar, baboso, baixei os olhos ao passar perto dela, sem antes reparar no fugaz piscar de olhos que me ofereceu com um sorriso a meia haste.
Entrou no comboio à minha frente, ficou em pé, encostada ao poste, flirtando com as pulseiras várias que trazia nos pulsos e com os longos cabelos que lhe caíam pelo peito.
Senti-me completamente hipnotizado por tanta ingénua perversão, não conseguia tirar os olhos desta sereia suburbana, certamente oriunda dos meus mais íntimos pesadelos, que se mantinha altiva e alheia ao meu insidioso exame.
De repente, sem qualquer espécie de aviso prévio, as luzes do comboio baixaram para permanecermos numa acolhedora penumbra, e a carruagem encheu-se de fumo rasteirinho. Ficámos só nós os dois, o mundo tinha desaparecido, e o comboio andava cada vez mais depressa, sem sinal de preocupação com eventuais paragens.
Ela olhou para mim, desta vez de frente, e a música que só ela ouvia ecoou inesperadamente nos meus ouvidos, enquanto ela languidamente mexia no cabelo, atirando os longos cachos para trás das costas, sem nunca desviar o seu olhar sonolento do meu. Com uma mão no poste começou a dançar, contorcendo-se só para mim, em poses lentas, sem pressas.
Largou o poste e pé ante pé, no mesmo ritmo suave, dirigiu-se a mim, pousando uma mão sobre a minha perna, a outra no meu ombro, aproximando a boca sabor a cereja do meu ouvido, e murmurou roucamente “acorda”...
- Acorda! É a nossa paragem!
Lá estava ela, à minha frente. Envergonhado da triste figura que sem dúvida teria feito a sonhar, baboso, baixei os olhos ao passar perto dela, sem antes reparar no fugaz piscar de olhos que me ofereceu com um sorriso a meia haste.
kindness of strangers
Arrasto-me durante as aulas da manhã. Antes de vir para o liceu pus duas cartas na estação dos correios ao lado de casa, uma para os meus pais e outra para ele. O culpado de tudo. Claro que ele não vai poder lê-la, mas quero que os pais dele a leiam quando estiverem a chorar pelo fim da miserável vida que geraram. Quero que eles saibam que ele foi o causador de tudo isto, que se ele estivesse calado nada disto tinha acontecido. Ele era o motivo, o fim, a razão, e quero que todos saibam disso e percebam que ele não merece qualquer lágrima que por ele seja vertida.
Eu ia só revelar-lhes as consequências do que fizeram, era apenas a mão divina que lhes traria o merecido e justo castigo! Tantas vezes rezei à noite para que a tortura acabasse, para que eu pudesse ir ao liceu pelo menos um dia sem ter que me defender daquele círculo infernal. Implorei tantas vezes por absolvição do pecado maior e desconhecido que fez cair sobre mim esta punição diária. Mas nunca tinha tido qualquer resposta às minhas preces. E de repente percebera claramente que temos que ser nós mesmos a responder às nossas próprias preces, a trazer para nós a força dos céus contra os ímpios. Pecadores sem contrição. Sou o veículo da fúria sagrada, devida e esperada.
As armas pesam-me no cinto, e o casaco comprido desajustado deste calor traz a mim os olhares dos que sofrerão a minha raiva. Tento recordar-me de cada um deles para ter a certeza que hoje não escapam. Lobos em pele de carneiro, crueldade adolescente sem justificação possível, psicologia barata não os salvaria. Hoje não. E não de mim.
À hora do almoço, no fim da última aula, levanto-me para ir fechar a porta da sala para começar a espalhar ao meu redor a força da merecida fúria mas sou agarrado por uma mão que me toca no ombro.
- Boas férias Carlos! – ouço alguém dizer com uma voz ensolarada. Ela sabe o meu nome! Sem saber porquê respondo, fraco, “obrigado”, e saio da sala para o corredor barulhento de miúdos quase em férias grandes e descoberto do meu plano, com o coração tremendo, sorrio.
Afinal, é o meu último dia de liceu, a faculdade prevê-se menos agreste, para quê perder tudo agora… Ela até sabe como me chamo…
Eu ia só revelar-lhes as consequências do que fizeram, era apenas a mão divina que lhes traria o merecido e justo castigo! Tantas vezes rezei à noite para que a tortura acabasse, para que eu pudesse ir ao liceu pelo menos um dia sem ter que me defender daquele círculo infernal. Implorei tantas vezes por absolvição do pecado maior e desconhecido que fez cair sobre mim esta punição diária. Mas nunca tinha tido qualquer resposta às minhas preces. E de repente percebera claramente que temos que ser nós mesmos a responder às nossas próprias preces, a trazer para nós a força dos céus contra os ímpios. Pecadores sem contrição. Sou o veículo da fúria sagrada, devida e esperada.
As armas pesam-me no cinto, e o casaco comprido desajustado deste calor traz a mim os olhares dos que sofrerão a minha raiva. Tento recordar-me de cada um deles para ter a certeza que hoje não escapam. Lobos em pele de carneiro, crueldade adolescente sem justificação possível, psicologia barata não os salvaria. Hoje não. E não de mim.
À hora do almoço, no fim da última aula, levanto-me para ir fechar a porta da sala para começar a espalhar ao meu redor a força da merecida fúria mas sou agarrado por uma mão que me toca no ombro.
- Boas férias Carlos! – ouço alguém dizer com uma voz ensolarada. Ela sabe o meu nome! Sem saber porquê respondo, fraco, “obrigado”, e saio da sala para o corredor barulhento de miúdos quase em férias grandes e descoberto do meu plano, com o coração tremendo, sorrio.
Afinal, é o meu último dia de liceu, a faculdade prevê-se menos agreste, para quê perder tudo agora… Ela até sabe como me chamo…
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