a máquina

Como era possível serem apenas três da tarde e já estar tão cansada... Não era só um estado de saturação emocional pela falta de sentido do seu dia a dia (que não se lembrava de ter escolhido activamente), mas mesmo fisicamente cansada.
Com um suspiro profundo ajeitou a carteira debaixo do cotovelo, há sempre umas corjinhas de gatunos nas estações de metro, que nos apanham desprevenidas para tomar como deles o que nos custou tanto a ganhar...
Enfim, era a vida como ela era, não podia fazer nada para a mudar...
Chegada às escadas rolantes da estação de metro percebeu que as escadas ascendentes estavam avariadas, apenas funcionando as escadas descendentes. “que raio de lógica”, pensou ela, resmungando em murmúrios sobressaltados, “agora ter que subir estes degraus todos, com a carteira e a pasta mais as compras...”.
Bem, lá tinha mesmo que ser, o que é que ela ia fazer, não havia elevador e não sabia a quem se queixar.
Começou a subir, primeiro com alguma energia, resquícios de cafés matinais em excesso, depois mais devagar, até chegar ao ponto de ir subindo degrau a degrau, agarrada ao corrimão, arfante pecadora de cigarros fumados furtivamente. Olhando para cima percebeu que alguma coisa estava errada, mas não conseguia perceber o quê. Enquanto a parte direita do túnel da estação, onde se encontravam as escadas rolantes descendentes, estavam bem iluminadas, o lado esquerdo, o das escadas ascendentes, encontrava-se escurecido, e ao fundo do túnel só conseguia ver costas de pessoas paradas.
Quando finalmente chegou ao topo das escadas, ofegante, encaixou-se naquela barreira de casacos, à espera de passar e poder ir trabalhar, que estava a ficar atrasada. Mas que remédio há que respeitar as filas, não podia começar a empurrar toda a gente.
Devagar a multidão avançava, em uníssono, como um muro arrastado por correntes sobrenaturais. Não se ouvia um ai. Apenas o lento arrastar dos pés quando se ganhavam alguns milímetros de espaço à frente. De olhos baixos, a multidão só via os pés da pessoa à sua frente.
Foi por isso que ninguém se queixou de levar um tiro na fronte quando a fila seguinte do muro chegava à porta da estação. Os jornais chamaram-lhe uma inteligente medida de controlo do sobrepovoamento do país. Foram louvados os esforços do exército e sobretudo a contenção com que tudo decorreu.

O que escapou a todos os comentadores e politólogos foi que ali não se mataram seres humanos, apenas componentes irracionais de uma bem oleada máquina.

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