Eram cinco da tarde. O preguiçoso dia de Verão, embriagado de caipirinhas e banhos de mar, ameaçava acabar, lento... Evaporava a ânsia de sol que nos guiara até aqui, zombies de vontade. O torpor dos mergulhos invadia-nos as pernas, e deitados na toalha dura de sal entreabrindo os olhos imaginávamos errantes fantasmas entre a sombra das pestanas. O sabor da pele plena de maresia era viciante, e colávamos a boca ao braço indecisos se íamos para a esplanada ou continuávamos ali.
Com pequenos gemidos de prazer egoísta mudávamos devagar de posição até estarmos colados, corpos fundidos em desavergonhadas poses.
Finalmente nos levantamos, decididos, recolhendo os despojos do dia de praia, roupa que arranha e toalhas que não dobram, e com óculos de sol e perversa languidez sentamo-nos nas cadeiras de plástico envelhecidas pelas intempéries dos anos. Cabeças inclinadas para trás, quais desenraizados girassóis, pés descalços … Mais uma sangria e um cigarro, coragem para voltar para casa… Palavras que se tornam murmúrios e mãos simbióticas em constante contacto… Sábados…
human behaviour
Anseio por ti, pelo teu cheiro, pelo teu colo, pelas tuas mãos no meu pêlo, nas minhas orelhas. Porque me largaste? Não ficava suficientemente contente quando te via? A cauda não batia com força? Não saltei tão alto como devia quando entravas em casa, cansado da rua?
Eu esperava por ti todos os dias à porta, religiosamente. Sentado em sentido e alerta para não deixar intrusos entrarem na tua toca. Portei-me bem, não foi? Então porque é que me deixaste aqui, ao frio, no meio de estranhos cheiros e formas que não conheço, pernas alheias que não consigo subir? Não gostavas quando me levavas a passear e eu adaptava o meu passo rápido de animal irracional ao teu humor? Lento se estavas triste, rápido se chateado, e solto se feliz.
Não encontro o teu rasto, perdi-te na cidade, nesta pedra fria que arrefece o meu olfacto. Os meus olhos não explicam por quem eu procuro, inutilmente tento ganir à gente para que me leve para casa. Mas como? Não sei onde é casa.
E de repente encontro-te! Lá estás tu, a correr, mãos em concha em frente à boca! Estás a chamar-me! Ó alegria suprema de te ver! Estou aqui, vês-me? Ouves-me? E de repente olhas para mim e a tua cara abre-se num sorriso que me faz saltar para o teu pescoço como louco, como nunca!
Leva-me para casa, por favor… Prometo que me porto bem…
Eu esperava por ti todos os dias à porta, religiosamente. Sentado em sentido e alerta para não deixar intrusos entrarem na tua toca. Portei-me bem, não foi? Então porque é que me deixaste aqui, ao frio, no meio de estranhos cheiros e formas que não conheço, pernas alheias que não consigo subir? Não gostavas quando me levavas a passear e eu adaptava o meu passo rápido de animal irracional ao teu humor? Lento se estavas triste, rápido se chateado, e solto se feliz.
Não encontro o teu rasto, perdi-te na cidade, nesta pedra fria que arrefece o meu olfacto. Os meus olhos não explicam por quem eu procuro, inutilmente tento ganir à gente para que me leve para casa. Mas como? Não sei onde é casa.
E de repente encontro-te! Lá estás tu, a correr, mãos em concha em frente à boca! Estás a chamar-me! Ó alegria suprema de te ver! Estou aqui, vês-me? Ouves-me? E de repente olhas para mim e a tua cara abre-se num sorriso que me faz saltar para o teu pescoço como louco, como nunca!
Leva-me para casa, por favor… Prometo que me porto bem…
primeira epifania
Sim quero.
Quero-te aqui, ao pé de mim.
Até me fartar.
Até tudo acabar, só por acabar.
Quero poder fartar-me,
quero ter-te tanto que me canse de ti.
Quero! E basta.
Quero-te aqui, ao pé de mim.
Até me fartar.
Até tudo acabar, só por acabar.
Quero poder fartar-me,
quero ter-te tanto que me canse de ti.
Quero! E basta.
1997 revisto
Ainda te quero para mim.
Ainda te quero para sempre, eternamente comigo.
Talvez amanhã não te queira para sempre,
certamente daqui a uns meses não te quero sequer.
Mas agora quero-te. Para sempre.
Como se eu fosse o resultado de ti, em lógicas continuações de nós.
São tuas as minhas mãos, teus os meus olhos, os meus braços, é tua a minha boca...
És tu que me tens ainda.
Não me quero de volta.
Talvez um dia.
Agora ainda não.
Ainda te quero para sempre, eternamente comigo.
Talvez amanhã não te queira para sempre,
certamente daqui a uns meses não te quero sequer.
Mas agora quero-te. Para sempre.
Como se eu fosse o resultado de ti, em lógicas continuações de nós.
São tuas as minhas mãos, teus os meus olhos, os meus braços, é tua a minha boca...
És tu que me tens ainda.
Não me quero de volta.
Talvez um dia.
Agora ainda não.
jogos nabokov
Era adorável com ao seu mini vestido cor de rosa que quase nada tapava, aliás nem seria esse o propósito. Do alto dos seus quinze anos espalhava um aroma de pastilha elástica de morango misturado com o perfume da moda e o odor dos cigarros roubados à socapa da carteira da sua mãe. Os cabelos castanhos tingidos do sol, sal e cloro trazia compridos e emaranhados num estado permanente de sono interrompido que deixava tudo à imaginação. A boca era quente e cor de rosa como o vestido e parecia estar constantemente a brincar com um chupa-chupa de um qualquer sabor perverso. Os olhos trazia-os tapados por uns óculos de sol de outros tempos, relíquias de juventude alheia. A pele morena das férias grandes coberta de penugem loira era uma provocação por si mesma. Os pés pequenos adornados com havaianas brancas contrastavam com a cor da pele que contrastava com as cores da pulseira que abanava com orgulho no tornozelo como se orgulhosa morena de Angola fosse…
Era adoravelmente tentadora neste espectáculo depravadamente apetecível, este pacote que usava à discrição para atingir objectivos de menina mimada. Fosse quem fosse o alvo da sua atenção - de curta duração, sempre - não tinha qualquer hipótese, resistir era inútil, e qualquer tentativa de luta só lhe dava mais prazer na perseguição da sua presa.
Quando finalmente se dignava a tirar os óculos de sol, os olhos cor de escárnio escaldante derretiam qualquer corpo a ponto rebuçado. Um pequeno levantar de sobrancelha treinado ao espelho e um semi-sorriso de garotice bem estudada eram quanto bastava para a rendição total.
Era adoravelmente tentadora neste espectáculo depravadamente apetecível, este pacote que usava à discrição para atingir objectivos de menina mimada. Fosse quem fosse o alvo da sua atenção - de curta duração, sempre - não tinha qualquer hipótese, resistir era inútil, e qualquer tentativa de luta só lhe dava mais prazer na perseguição da sua presa.
Quando finalmente se dignava a tirar os óculos de sol, os olhos cor de escárnio escaldante derretiam qualquer corpo a ponto rebuçado. Um pequeno levantar de sobrancelha treinado ao espelho e um semi-sorriso de garotice bem estudada eram quanto bastava para a rendição total.
rituais preparatórios
Acordava de manhã cedo, bem cedo. Demorava muito tempo a arranjar-se para ir trabalhar. Primeiro retirava o produto branqueador dos dentes que uma amiga lhe tinha trazido do estrangeiro. Depois o pequeno-almoço, sempre em casa, na enorme mesa da casa de jantar que ainda pagava em suaves prestações mensais. Com o seu roupão cor-de-rosa, o cabelo já penteado, e na cara a substância pastosa da máscara daquele dia. Comia com calma, sem pressas. Odiava correr de manhã. Arrumava a cozinha, arrumava o quarto, escolhia a roupa com cuidado. O duche também era lento e acolhedor, para acordar o corpo e a mente. Tinha lido numa revista que este era um dos primeiros rituais de paz diária para mulheres facilmente impressionáveis com tais verdades absolutas.
Enxugava-se vigorosamente, com uma toalha com propriedades esfoliantes comprada por catálogo, já não sabia qual deles. Espalhava o creme anti-envelhecimento nos braços, na barriga o creme redutor e nas pernas o anti-celulítico da praxe. Passava o creme dos olhos, aquele boião pequeno espelhado com elementos marinhos e o creme anti-rugas para peles mistas a oleosas no resto da sua cara mimada. Punha com algum sofrimento necessário as lentes de contacto com suaves reflexos de azul para esconder os olhos castanhos. Os dentes eram lavados com toda a precisão, primeiro a escova, depois o fio dental, depois o elixir. Vestia-se com cuidado para não amachucar a roupa neste processo difícil que era tentar sair de casa de manhã. Agarrou no secador e na escova redonda metálica e, concentrada, reformulou o cabelo como sabia que era a moda naquela estação. A cor aplicada no cabeleireiro era a ideal, estava orgulhosa de si mesma.
Agora era a sua parte preferida.
Escolheu a base e o anti-olheiras para aquele dia.
Primeiro a base, com a esponja especial que lhe tinha custado mais do que seria de esperar.
Depois com cuidado o anti-olheiras debaixo dos olhos.
Depois o iluminador nos sítios chave.
Depois o eyeliner e o risco nos olhos, a sombra cor-de-rosa a dar com o vestido escolhido.
Depois retocava o eyeliner e o risco.
Depois o rímel nas parcas pestanas.
Depois o pó solto para uniformizar a palete de cores da sua cara.
Depois o blush para acordar as bochechas.
Depois o batom também cor-de-rosa. Beijou ternamente um pedaço de papel higiénico como tinha visto inúmeras vezes nos filmes.
Finalmente o gloss.
Estava pronta para sair de casa. Pegou no casaco e na carteira e saiu. Passou pelo quiosque a comprar as revistas que tinham saído naquele dia, várias com várias celebridades nas capas e letras chocantes que revelavam vidas mundanas e dramas telenovelescos, e noutras com chamarizes irresistíveis como “Seja feliz em doze passos”.
Abriu a porta do carro. Sentou-se. Era hoje que ia conhecer o seu homem, o seu príncipe encantado. Tinha a certeza, estava pronta.
Enxugava-se vigorosamente, com uma toalha com propriedades esfoliantes comprada por catálogo, já não sabia qual deles. Espalhava o creme anti-envelhecimento nos braços, na barriga o creme redutor e nas pernas o anti-celulítico da praxe. Passava o creme dos olhos, aquele boião pequeno espelhado com elementos marinhos e o creme anti-rugas para peles mistas a oleosas no resto da sua cara mimada. Punha com algum sofrimento necessário as lentes de contacto com suaves reflexos de azul para esconder os olhos castanhos. Os dentes eram lavados com toda a precisão, primeiro a escova, depois o fio dental, depois o elixir. Vestia-se com cuidado para não amachucar a roupa neste processo difícil que era tentar sair de casa de manhã. Agarrou no secador e na escova redonda metálica e, concentrada, reformulou o cabelo como sabia que era a moda naquela estação. A cor aplicada no cabeleireiro era a ideal, estava orgulhosa de si mesma.
Agora era a sua parte preferida.
Escolheu a base e o anti-olheiras para aquele dia.
Primeiro a base, com a esponja especial que lhe tinha custado mais do que seria de esperar.
Depois com cuidado o anti-olheiras debaixo dos olhos.
Depois o iluminador nos sítios chave.
Depois o eyeliner e o risco nos olhos, a sombra cor-de-rosa a dar com o vestido escolhido.
Depois retocava o eyeliner e o risco.
Depois o rímel nas parcas pestanas.
Depois o pó solto para uniformizar a palete de cores da sua cara.
Depois o blush para acordar as bochechas.
Depois o batom também cor-de-rosa. Beijou ternamente um pedaço de papel higiénico como tinha visto inúmeras vezes nos filmes.
Finalmente o gloss.
Estava pronta para sair de casa. Pegou no casaco e na carteira e saiu. Passou pelo quiosque a comprar as revistas que tinham saído naquele dia, várias com várias celebridades nas capas e letras chocantes que revelavam vidas mundanas e dramas telenovelescos, e noutras com chamarizes irresistíveis como “Seja feliz em doze passos”.
Abriu a porta do carro. Sentou-se. Era hoje que ia conhecer o seu homem, o seu príncipe encantado. Tinha a certeza, estava pronta.
crónicas de um eléctrico amarelo
Sentou-se no primeiro banco vazio, o dos velhos e enjeitados.
Ajeitou a pasta, onde trazia os papéis para trabalhar em casa, os cálculos e balancetes e os livros de razão ou falta dela. Puxava os óculos para junto dos olhos, passava a mão nos cabelos húmidos de chuva e oleosidade constante. Fechava mais o sobretudo, o do seu Pai, remendado com orgulho pelas mãos tortas da sua mãe, que o meu filho doutor não há-de ter frio e tem que fazer boa figura no serviço.
Amanhã seria mais um dia igual a este. Hoje chegaria a casa, tarde, demasiado tarde, porque o caminho entre o escritório e a o lar “doce” lar demorava várias horas e meios de transporte diferentes. Havia dias em que acabava em pé todo o caminho, adormecendo agarrado a um metal solitário, enquanto segurava com os pés a pasta e com a mão o chapéu-de-chuva preto, que quando chovia tentava afastar das calças em esforços titânicos mas sempre inglórios. Um homem prevenido vale por dois, e por dois valia ele, nunca saía de casa sem o chapéu-de-chuva, era já motivo de risota dos colegas.
Jantaria qualquer coisa a correr que a mulher lhe deixara no microondas antes de dar a telenovela, depois de a beijar rapidamente na bochecha porque há muito lhe passara a vontade de a beijar como quando eram miúdos e namoravam nos jardins do bairro. Tentaria falar com o seu filho, único porque o dinheiro não deu para mais, mas a concorrência da playstation presente de Natal do ano passado era demasiado forte para um Pai contabilista e desactualizado.
Enquanto pensava no que o esperava em casa, neste vazio atulhado de bricabraques inúteis, sentiu-se sufocar por paredes invisíveis de bruscos cinzentos
Foi então que viu. Na entrada da porta do eléctrico estava um agente da polícia, fardado e de arma no coldre. Reparou que o coldre estava aberto, que nada o impediria de pegar na arma e de arrancar deste eléctrico a sua própria importância. Imaginou-se qual Clint Eastwood da sua meninice, que nunca fora de poesias, bradando a arma aos céus e exigindo respeito.
Mas respeito de quem, e porquê? O que tinha feito para merecer tal respeito? Tal como a sua mulher o relembrava diariamente, era um falhado, um zero, um nada. Um Pai ausente que não reconhecia o filho, um marido indiferente de uma mulher mal amada, um contabilista cinzento que confirmava em todos os minutos da sua existência velhos hábitos e clichés.
Lentamente levantou-se, pegou na pasta, no chapéu-de-chuva, carregou no botão encarnado para sair, de ombros pesados e cabeça baixa, pensando como tudo mudaria se ganhasse o euro milhões esta semana…
Ajeitou a pasta, onde trazia os papéis para trabalhar em casa, os cálculos e balancetes e os livros de razão ou falta dela. Puxava os óculos para junto dos olhos, passava a mão nos cabelos húmidos de chuva e oleosidade constante. Fechava mais o sobretudo, o do seu Pai, remendado com orgulho pelas mãos tortas da sua mãe, que o meu filho doutor não há-de ter frio e tem que fazer boa figura no serviço.
Amanhã seria mais um dia igual a este. Hoje chegaria a casa, tarde, demasiado tarde, porque o caminho entre o escritório e a o lar “doce” lar demorava várias horas e meios de transporte diferentes. Havia dias em que acabava em pé todo o caminho, adormecendo agarrado a um metal solitário, enquanto segurava com os pés a pasta e com a mão o chapéu-de-chuva preto, que quando chovia tentava afastar das calças em esforços titânicos mas sempre inglórios. Um homem prevenido vale por dois, e por dois valia ele, nunca saía de casa sem o chapéu-de-chuva, era já motivo de risota dos colegas.
Jantaria qualquer coisa a correr que a mulher lhe deixara no microondas antes de dar a telenovela, depois de a beijar rapidamente na bochecha porque há muito lhe passara a vontade de a beijar como quando eram miúdos e namoravam nos jardins do bairro. Tentaria falar com o seu filho, único porque o dinheiro não deu para mais, mas a concorrência da playstation presente de Natal do ano passado era demasiado forte para um Pai contabilista e desactualizado.
Enquanto pensava no que o esperava em casa, neste vazio atulhado de bricabraques inúteis, sentiu-se sufocar por paredes invisíveis de bruscos cinzentos
Foi então que viu. Na entrada da porta do eléctrico estava um agente da polícia, fardado e de arma no coldre. Reparou que o coldre estava aberto, que nada o impediria de pegar na arma e de arrancar deste eléctrico a sua própria importância. Imaginou-se qual Clint Eastwood da sua meninice, que nunca fora de poesias, bradando a arma aos céus e exigindo respeito.
Mas respeito de quem, e porquê? O que tinha feito para merecer tal respeito? Tal como a sua mulher o relembrava diariamente, era um falhado, um zero, um nada. Um Pai ausente que não reconhecia o filho, um marido indiferente de uma mulher mal amada, um contabilista cinzento que confirmava em todos os minutos da sua existência velhos hábitos e clichés.
Lentamente levantou-se, pegou na pasta, no chapéu-de-chuva, carregou no botão encarnado para sair, de ombros pesados e cabeça baixa, pensando como tudo mudaria se ganhasse o euro milhões esta semana…
once upon a time, in a far away land...
Era uma vez uma fada princesa, que vivia no reino das fadas princesas, com a sua família de fadas princesas e com todas as suas amigas fadas princesas. Passavam o dia a fazer coisas que só as fadas princesas faziam, em perpétuo espanto com tudo o que viam, em perfeita conjugação com a natureza que as rodeava. Cantavam com os pássaros, nadavam com os peixes, corriam com os unicórnios e faziam enormes sestas à sombra das inúmeras árvores.
Esta fada princesa tinha ainda outra ocupação: observar o mundo das pessoas, as suas cidades, os cafés, restaurantes, lojas, todas as coisas inúteis que as definiam. Fascinavam-na na sua mistura semi-humana semi-divina, pareciam olvidados da sua importância, davam privilégios reais a trágicas rotinas diárias... Um dia decidiu que queria experimentar viver entre eles.
Pediu ao conselho das fadas princesas se podia experimentar ser pessoa, ver se conseguiria manter-se fada naquelas estranhas maquinações. Por ser uma fada princesa exemplar, foi-lhe permitida uma vida humana entre as pessoas. Com a condição de não envelhecer, para não se esquecer que era uma fada princesa e nunca sentir o peso da idade no seu frágil corpo.
E assim foi.
A fada princesa viveu uma vida humana entre as pessoas. Nasceu, foi à escola, fez asneiras, namorou, casou e teve filhos. Teve todas as experiências de uma vida humana excepto envelhecer.
E durante essa vida humana espalhou à sua volta uma leveza, uma alegria despreocupada e uma estranha harmonia como se tudo fosse parte de uma bem ensaiada peça de teatro que teria, certamente, final feliz.
E quando a fada princesa voltou ao mundo das fadas princesas, contou a todas as suas amigas e a quem mais a quisesse ouvir que uma vida humana, mesmo para quem não envelhecia, era uma imensa eternidade.
Esta fada princesa tinha ainda outra ocupação: observar o mundo das pessoas, as suas cidades, os cafés, restaurantes, lojas, todas as coisas inúteis que as definiam. Fascinavam-na na sua mistura semi-humana semi-divina, pareciam olvidados da sua importância, davam privilégios reais a trágicas rotinas diárias... Um dia decidiu que queria experimentar viver entre eles.
Pediu ao conselho das fadas princesas se podia experimentar ser pessoa, ver se conseguiria manter-se fada naquelas estranhas maquinações. Por ser uma fada princesa exemplar, foi-lhe permitida uma vida humana entre as pessoas. Com a condição de não envelhecer, para não se esquecer que era uma fada princesa e nunca sentir o peso da idade no seu frágil corpo.
E assim foi.
A fada princesa viveu uma vida humana entre as pessoas. Nasceu, foi à escola, fez asneiras, namorou, casou e teve filhos. Teve todas as experiências de uma vida humana excepto envelhecer.
E durante essa vida humana espalhou à sua volta uma leveza, uma alegria despreocupada e uma estranha harmonia como se tudo fosse parte de uma bem ensaiada peça de teatro que teria, certamente, final feliz.
E quando a fada princesa voltou ao mundo das fadas princesas, contou a todas as suas amigas e a quem mais a quisesse ouvir que uma vida humana, mesmo para quem não envelhecia, era uma imensa eternidade.
re-descobertas
Penteou os cabelos compridos com calma, como se o mundo se tivesse sentado a descansar. Agora não era preciso correr, já tinha corrido muito. Com cuidado desembaraçou o mar de prata que lhe escorria pelas costas, sem pensar nas horas ou nos mil afazeres com que habitualmente preenchia os seus dias.
Hoje talvez não os prendesse. Que glória esta demonstração viva do seu longo passado! Que ode às pessoas que tinha conhecido, reconhecido e perdido durante a sua vida! Cada reflexo branco era uma cicatriz que hoje lhe apetecia exibir com o orgulho de um veterano. Hoje não percebia o porquê da regra não escrita que as mulheres de bem deviam pintar os cabelos brancos. Que desonestidade lhe parecia, que fingimento narcisista, destinado a agradar a quem? A esconder o quê? Que vergonhas traziam estes fios brancos às suas portadoras?
Olhou-se ao espelho devagar, parando os olhos em cada ruga, em cada sinal, em cada mancha. De repente deixaram de lhe fazer sentido as toneladas de creme anti rugas, de esfoliantes, de protectores solares com que tinha presenteado a sua pele todos os dias da sua vida. Quanto tinha já gasto nestas tentativas de parar o tempo? Cada ruga era um sorriso, uma dor, um sentimento ali plantado na sua cara, baluarte de vida. Ao observar as suas rugas, sinais, manchas, lembrou-se dos seus pais, dos seus amigos, do seu primeiro amor, do seu último amor - o seu marido que ouvia cantar enquanto preparava o pequeno almoço - dos seus filhos, dos seus netos. Porque raio de carga de água tinha querido apagar estas rugas? Não tinha qualquer vontade de esquecer nenhum deles, nem sequer as dores passadas. Era tudo parte dela...
Ouviu a voz grave do seu marido a chamar por ela, olhou-se mais uma vez ao espelho, sorriu para si mesma enquanto murmurou um divertido parabéns.
Hoje talvez não os prendesse. Que glória esta demonstração viva do seu longo passado! Que ode às pessoas que tinha conhecido, reconhecido e perdido durante a sua vida! Cada reflexo branco era uma cicatriz que hoje lhe apetecia exibir com o orgulho de um veterano. Hoje não percebia o porquê da regra não escrita que as mulheres de bem deviam pintar os cabelos brancos. Que desonestidade lhe parecia, que fingimento narcisista, destinado a agradar a quem? A esconder o quê? Que vergonhas traziam estes fios brancos às suas portadoras?
Olhou-se ao espelho devagar, parando os olhos em cada ruga, em cada sinal, em cada mancha. De repente deixaram de lhe fazer sentido as toneladas de creme anti rugas, de esfoliantes, de protectores solares com que tinha presenteado a sua pele todos os dias da sua vida. Quanto tinha já gasto nestas tentativas de parar o tempo? Cada ruga era um sorriso, uma dor, um sentimento ali plantado na sua cara, baluarte de vida. Ao observar as suas rugas, sinais, manchas, lembrou-se dos seus pais, dos seus amigos, do seu primeiro amor, do seu último amor - o seu marido que ouvia cantar enquanto preparava o pequeno almoço - dos seus filhos, dos seus netos. Porque raio de carga de água tinha querido apagar estas rugas? Não tinha qualquer vontade de esquecer nenhum deles, nem sequer as dores passadas. Era tudo parte dela...
Ouviu a voz grave do seu marido a chamar por ela, olhou-se mais uma vez ao espelho, sorriu para si mesma enquanto murmurou um divertido parabéns.
pontos de vista
Entrou no autocarro e sentou-se no lugar vago ao lado da janela. Não andava de transportes públicos há muitos anos. Aliás, não andava em terra há muitos anos. Era impressionante pensar que estes monstros citadinos passavam pelo asfalto sem deixar qualquer rasto, como se fosse indiferente à terra o que por ela passava…
Sentiu uma enorme tristeza ao perceber que aqui, neste mar de cimento imenso, parecia que nada deixava marca, era tudo imutável, e até o vento era obrigado a percorrer corredores criados. Talvez fosse por isso que à sua volta via caras pesadas de pessoas cansadas do esforço que devia ser moverem-se sem a ajuda da natureza, perdidos sem guias. Aqui nada se via por cima das montanhas de pedra para além de um enorme cinzento. Aliás, dentro do autocarro só via o próprio reflexo perdido na janela.
Distraiu-se com o barulho incessante de um bebé, divertido com a chupeta, que punha e tirava da boca com ar de desafio, e pensou que talvez houvesse ainda esperança para esta raça estranha de gente citadina, se havia ainda crianças que se conseguiam surpreender a si mesmas, ali fechadas nas paredes escuras de um moderno autocarro condicionado.
Sentiu uma enorme tristeza ao perceber que aqui, neste mar de cimento imenso, parecia que nada deixava marca, era tudo imutável, e até o vento era obrigado a percorrer corredores criados. Talvez fosse por isso que à sua volta via caras pesadas de pessoas cansadas do esforço que devia ser moverem-se sem a ajuda da natureza, perdidos sem guias. Aqui nada se via por cima das montanhas de pedra para além de um enorme cinzento. Aliás, dentro do autocarro só via o próprio reflexo perdido na janela.
Distraiu-se com o barulho incessante de um bebé, divertido com a chupeta, que punha e tirava da boca com ar de desafio, e pensou que talvez houvesse ainda esperança para esta raça estranha de gente citadina, se havia ainda crianças que se conseguiam surpreender a si mesmas, ali fechadas nas paredes escuras de um moderno autocarro condicionado.
desabafo
Há dias difíceis para escrever. Porque o telefone toca demais, porque a roupa se acumula no cesto, porque a loiça não se lava sozinha, porque há camas para fazer e chãos para aspirar e sopas para fazer.
Talvez um dia tudo se faça sozinho, ou de alguma forma automática, sem a nossa intervenção, e possamos passar o dia a fazer o que gostamos mais, apenas e só. E talvez aí não tenhamos rigorosamente nada sobre o que escrever.
Ou não, ou será apenas este sentimento de não ter nada para dizer um reflexo de uma preguicite resultante de mentes cansadas após semanas inteiras de endless problems solving?
Ou apenas o medo daquele ecrã branco enorme que nos olha fixamente à espera das nossas verdades absolutas?
Ou talvez seja mesmo a vontade de viver a vida antes de escrever sobre ela, de gozar os momentos de felicidade surreais?
Nesses momentos, mais vale escrever isto do que nada, certo?
Talvez um dia tudo se faça sozinho, ou de alguma forma automática, sem a nossa intervenção, e possamos passar o dia a fazer o que gostamos mais, apenas e só. E talvez aí não tenhamos rigorosamente nada sobre o que escrever.
Ou não, ou será apenas este sentimento de não ter nada para dizer um reflexo de uma preguicite resultante de mentes cansadas após semanas inteiras de endless problems solving?
Ou apenas o medo daquele ecrã branco enorme que nos olha fixamente à espera das nossas verdades absolutas?
Ou talvez seja mesmo a vontade de viver a vida antes de escrever sobre ela, de gozar os momentos de felicidade surreais?
Nesses momentos, mais vale escrever isto do que nada, certo?
conformismos desconformes
Saiu do serviço tarde para o que era habitual. Normalmente conseguia sair ao bater das cinco , mas como hoje era dia de greve tinha ficado para além da sua hora para ajudar o chefe. Não lhe interessavam as greves. Achava que isso era tudo obra de comunas, esses bandidos que não queriam era fazer nenhum. Por que outra razão é que as greves eram sempre à sexta-feira? Não, ele queria era trabalhar, para ter o seu dinheirinho certo ao fim do mês. Não arriscava perder este emprego, custara-lhe tanto chegar aqui.
Tinha começado a trabalhar aos 16 anos como varredor de ruas da capital, serviço duro e que o tinha feito mais solitário do que era antes, preso aos seus botões. Com esforço tinha conseguido acabar o liceu à noite, e rumado para um curso profissional de contabilidade, que lhe tinha aberto as portas de um serviço de finanças.
A partir daí os seus dias passaram a ser dominados por despachos, certificados, cadernetas, certidões, recibos, facturas, cartões, informações, declarações, coimas, contra ordenações e demais burocracias farpadas. Eram temas que dominava com a ligeireza das cabeças cinzentas, e sobre os quais não pensava em demasia, porque era assim mesmo, não havia em que pensar, apenas aplicar e cumprir, ou fazer cumprir.
Virgem por preguiça, ateu por convicção, vivia na casa que tinha sido dos seus Pais, há muito mortos de velhice ou cansaço, vá-se lá saber. O seu único consolo era a sopinha quente deixada pela Maria, vizinha de bons paladares que o ajudava nas lides domésticas.
Saiu do metro e caminhou até casa no seu passo miudinho de quem não tem preocupações mas também não tem alegrias. Imaginemo-lo de chapéu de feltro preto, numa Lisboa cinzenta de tempos idos.
Entrando em casa, foi saudado com gritos de alegria do seu irmão mais novo, que abraçou forte e ternamente. Viviam juntos desde sempre, era uma espécie de filho e não irmão, um ser eternamente dependente.
Era por ele que não se rebelava, que não saia do seu auto infligido casulo. Quem cuidaria do seu irmão mais novo se alguma coisa lhe acontecesse? Ninguém certamente, que ninguém tem amor suficiente para dar a estranhos.
Largou o casaco, agarrou o irmão mais novo pela mão que este lhe oferecia, e perguntou-lhe se já tinha lanchado, e se queria que ele lhe lesse uma história.
Tinha começado a trabalhar aos 16 anos como varredor de ruas da capital, serviço duro e que o tinha feito mais solitário do que era antes, preso aos seus botões. Com esforço tinha conseguido acabar o liceu à noite, e rumado para um curso profissional de contabilidade, que lhe tinha aberto as portas de um serviço de finanças.
A partir daí os seus dias passaram a ser dominados por despachos, certificados, cadernetas, certidões, recibos, facturas, cartões, informações, declarações, coimas, contra ordenações e demais burocracias farpadas. Eram temas que dominava com a ligeireza das cabeças cinzentas, e sobre os quais não pensava em demasia, porque era assim mesmo, não havia em que pensar, apenas aplicar e cumprir, ou fazer cumprir.
Virgem por preguiça, ateu por convicção, vivia na casa que tinha sido dos seus Pais, há muito mortos de velhice ou cansaço, vá-se lá saber. O seu único consolo era a sopinha quente deixada pela Maria, vizinha de bons paladares que o ajudava nas lides domésticas.
Saiu do metro e caminhou até casa no seu passo miudinho de quem não tem preocupações mas também não tem alegrias. Imaginemo-lo de chapéu de feltro preto, numa Lisboa cinzenta de tempos idos.
Entrando em casa, foi saudado com gritos de alegria do seu irmão mais novo, que abraçou forte e ternamente. Viviam juntos desde sempre, era uma espécie de filho e não irmão, um ser eternamente dependente.
Era por ele que não se rebelava, que não saia do seu auto infligido casulo. Quem cuidaria do seu irmão mais novo se alguma coisa lhe acontecesse? Ninguém certamente, que ninguém tem amor suficiente para dar a estranhos.
Largou o casaco, agarrou o irmão mais novo pela mão que este lhe oferecia, e perguntou-lhe se já tinha lanchado, e se queria que ele lhe lesse uma história.
a velha
Na paragem de autocarro, era apenas mais uma velha rodeada de sacos de plástico tão velhos e gastos como ela, alguns apregoando lojas que já tinham fechado há largos anos. De vez em quando a patroa deixava-a usar um dos sacos das lojas chiques onde comprava aquelas roupas de marca, que serviam para o mesmo que serviam as suas, mais coçadas, mas que acabam apenas por ser mais difíceis de lavar…
Tinha sido uma mulher bonita, roliça e de anca fácil. Por gozo e desafio, durante anos tinha assombrado os bêbados das tascas do Bairro Alto meneando a cintura ao som dos seus próprios passos, duros e secos de esperteza saloia e rápida incutida por anos e anos de conselhos maternos.
Cabelos ondulados pretos petróleo, olhos negros e tez alva, tinham-na cantado fadistas de vida escondida e estudantes em busca de prazer inconsequente. Cabelos esses que, outrora compridos, pela cintura, ciganinha de alcunha, há muito passaram a ser frisados, agora a velha usava-os curtos, com ganchos de vários tipos, e assumiam uma cor de burro quando foge, porque o preto não se pode usar para pintar as brancas que espreitavam bem juntinho do crânio. Os olhos, esses mal os via, atrás dos fundos de garrafa escorregadios que em nada ajudavam na luta diária entre os sacos de plástico e o passe social.
Agora sentava-se pesadamente nos autocarros que apanhava para ir para o serviço e para voltar para casa, cansada das pernas pesadas de anos de trabalho árduo mas honesto, sempre honesto. O corpo antes fonte de suspiros e invejas, agora vencia-a nas dores dos reumatismos e artroses.
Mas se parava numa montra, coquete olhava-se de lado, e via a jovem roliça e prazenteira e, velha, meneava a anca num andar que destoava dos sacos de plástico que carregava.
Tinha sido uma mulher bonita, roliça e de anca fácil. Por gozo e desafio, durante anos tinha assombrado os bêbados das tascas do Bairro Alto meneando a cintura ao som dos seus próprios passos, duros e secos de esperteza saloia e rápida incutida por anos e anos de conselhos maternos.
Cabelos ondulados pretos petróleo, olhos negros e tez alva, tinham-na cantado fadistas de vida escondida e estudantes em busca de prazer inconsequente. Cabelos esses que, outrora compridos, pela cintura, ciganinha de alcunha, há muito passaram a ser frisados, agora a velha usava-os curtos, com ganchos de vários tipos, e assumiam uma cor de burro quando foge, porque o preto não se pode usar para pintar as brancas que espreitavam bem juntinho do crânio. Os olhos, esses mal os via, atrás dos fundos de garrafa escorregadios que em nada ajudavam na luta diária entre os sacos de plástico e o passe social.
Agora sentava-se pesadamente nos autocarros que apanhava para ir para o serviço e para voltar para casa, cansada das pernas pesadas de anos de trabalho árduo mas honesto, sempre honesto. O corpo antes fonte de suspiros e invejas, agora vencia-a nas dores dos reumatismos e artroses.
Mas se parava numa montra, coquete olhava-se de lado, e via a jovem roliça e prazenteira e, velha, meneava a anca num andar que destoava dos sacos de plástico que carregava.
kudos
Quando se viram a terra parou. Sem volta nem retorno. Os planetas finalmente se alinharam em conjugação com o Universo e toda a Natureza reconheceu por fim que tudo o que existe é apenas composto por energia comum.
Quando se abraçaram o vento parou, as nuvens caíram e o sol abriu, sem razão racional, mas só para aquecer almas frias que precisassem de colo. As ondas pararam, os Oceanos acalmaram, sem necessidade de continuar a eterna luta, e perceberam que eram um só com os pobres grãos de areia habituados à violência de mar picado.
Quando se beijaram as árvores encheram-se de frutos porque sim, as plantas cobriram-se de flores with no rhyme or reason, as montanhas voltaram a cobrir-se de neve sem medo dos degelos, e os pássaros cantaram em uníssono porque deixara de fazer sentido qualquer desarmonia.
Quando se abraçaram o vento parou, as nuvens caíram e o sol abriu, sem razão racional, mas só para aquecer almas frias que precisassem de colo. As ondas pararam, os Oceanos acalmaram, sem necessidade de continuar a eterna luta, e perceberam que eram um só com os pobres grãos de areia habituados à violência de mar picado.
Quando se beijaram as árvores encheram-se de frutos porque sim, as plantas cobriram-se de flores with no rhyme or reason, as montanhas voltaram a cobrir-se de neve sem medo dos degelos, e os pássaros cantaram em uníssono porque deixara de fazer sentido qualquer desarmonia.
waste of time
“Estava tão atrasada, tinha cabeleireiro marcado para as 3 e ainda não tinha tido tempo sequer de ir levantar as calças à lavandaria. Não percebia porque é que a mãe não deixava que a Maria do Céu tratasse dessas coisas, estava lá em casa há imenso tempo, tipo, já podia ter aprendido onde era a lavandaria. Mas porque é que a porta do carro não abria? Que chatice, ter que largar o seu capuccino em cima do carro, ia ficar frio de certeza. Já era altura de trocar de carro, morria de vergonha de andar com aquela traquitana velha, afinal de contas não fazia sentido ter que ir para a faculdade todos os dias com um carro em segunda mão agora, no segundo ano da faculdade, quando todas as suas amigas tinham recebido um carro novinho em folha quando passaram de ano. Além disso a mãe tinha-lhe prometido aquele Mini fantástico descapotável se conseguisse passar de ano, e isso tinha sido há dois meses, mais que tempo. Ok, dentro do carro. Ligou à cabeleireira a dizer que estava atrasada, não que fossem passar outra pessoa à sua frente, não se atreveriam, entre ela, a mãe e as suas irmãs ia lá pelo menos uma todos os dias. Agora ligar ao seu namorado, porque não era normal tê-la deixado plantada à espera dele ontem à noite nos cinemas do centro comercial, rodeada de gente feia e suburbana e a tentar equilibrar-se nas suas botas novas. Tinha ainda que lhe perguntar o que se passava com os seus amigos, parecia que andavam mas não andavam, se calhar não, se pensasse no que a sua amiga tinha andado a fazer este verão, que horror, interrail, de mochila às costas e a dormir sabe Deus onde e, horror dos horrores, sem telemóvel nem cartão de crédito, nem sequer tinha conseguido falar com ela decentemente, só sabia que tinha conhecido umas espanholas, e para piorar o cenário, tinha ido com elas para o sul de Espanha, onde toda a gente sabe que só vai gentinha pobre da Europa que não tem dinheiro para ir para outros sítios. Mais este trânsito, mas que coisa, estava o mundo toda contra ela, bolas, uma unha partida. Ao menos ia para o cabeleireiro, tratava lá disso.”
Enquanto olhava para a unha partida bateu de frente num camião TIR. Nunca chegou ao cabeleireiro.
Enquanto olhava para a unha partida bateu de frente num camião TIR. Nunca chegou ao cabeleireiro.
catarses
Era uma vez um sapo, verde e nojento como só os sapos sabem ser, como o charco onde vivia, verde e denso de porcaria acumulada do bosque onde estava. Era gordo e feio e tinha uma pele peganhenta, rugosa e acastanhada a lembrar outras porcarias. Tinha olhos esbugalhados e as patas pareciam manápulas. Controlava o ar com os olhos vítreos e húmidos em busca de moscas, que com a sua língua de metro e meio (e certamente viperina se percebêssemos o seu constante coaxar) arrebanhava e comia num esgar de contentamento, imaginamos nós. Se fosse homem seria sem dúvida Dâmaso Salcede.
Era uma vez um urso, burro como só os ursos podem ser, pesado e desajeitado, velho e de pêlo gasto, tinha desaparecido o cuddly bear que era quando nascera, há muito que se tornara este ser desengonçado e estúpido que parecia matar salmões apenas por prazer. De vez em quando lá atirava uma espécie de rugido para o ar, num display de força bruta que apenas faria rir quem por perto estivesse, que fraca figura. Se fosse um homem seria certamente a personificação de Bafo de Onça.
Era uma vez um porco, cruel como só os porcos conseguem ser. Falso e matreiro, tanto assumia a sua cor suja e porca como parecia lindo em cor-de-rosa, rabinho de bebé. Passava o dia a chafurdar na lama e a tentar derrubar quem por lá passasse, buscando talvez comida ou até uma refeição barata no próprio incauto. Ao pé dele sentia-se uma incerteza e desconfiança, talvez inspirada nos filmes de Hollywood, 'ele quer comer-nos a todos, é melhor preparar aí um rancho qualquer para o apaziguar'. Se fosse um homem seria com certeza Uriah Heep
Era uma vez um urso, burro como só os ursos podem ser, pesado e desajeitado, velho e de pêlo gasto, tinha desaparecido o cuddly bear que era quando nascera, há muito que se tornara este ser desengonçado e estúpido que parecia matar salmões apenas por prazer. De vez em quando lá atirava uma espécie de rugido para o ar, num display de força bruta que apenas faria rir quem por perto estivesse, que fraca figura. Se fosse um homem seria certamente a personificação de Bafo de Onça.
Era uma vez um porco, cruel como só os porcos conseguem ser. Falso e matreiro, tanto assumia a sua cor suja e porca como parecia lindo em cor-de-rosa, rabinho de bebé. Passava o dia a chafurdar na lama e a tentar derrubar quem por lá passasse, buscando talvez comida ou até uma refeição barata no próprio incauto. Ao pé dele sentia-se uma incerteza e desconfiança, talvez inspirada nos filmes de Hollywood, 'ele quer comer-nos a todos, é melhor preparar aí um rancho qualquer para o apaziguar'. Se fosse um homem seria com certeza Uriah Heep
alegorias
Tinham passado vinte e cinco anos. Perdera a conta ao número de dias e horas e minutos que tinha passado encaixado naqueles muros. Sempre os muros, as paredes, as grades, o pavimento sujo de porcaria que não saia, de cheiro a lixívia barata despejada sem cuidado pelos móveis com um fingimento óbvio de sanidade, não mental, seguramente nunca mental, essa tinha-a perdido no dia em que tinha ouvido a leitura do acórdão.
Vinte e cinco anos de convivência diária com pessoas que não conhecia, que não queria conhecer, que conseguiu nunca conhecer. Nunca quis rever-se naquelas caras destruídas, imundas de psicoses mal resolvidas, de histórias sempre iguais e nunca as mesmas, de passados impuros que tentavam lavar com a mesma lixívia que usavam para as paredes, barata, sem nexo nem razão.
Olhou uma última vez para trás, enquanto pegava no saco gasto e usado. Ninguém o vinha buscar, não tinha ninguém nesta vida, os seus pecados antigos tinham-se certificado disso. Todo o mal que tinha feito tinha-o pago ali dentro, vinte e cinco anos ali dentro, na mesma cama, na mesma cela, sempre na mesma.
Abriram-se os pesados portões que o levariam dali para fora. Olhou para os seus pés, um em frente ao outro foi seguindo pelo caminho já percorrido tantas vezes por tanta gente, nunca por ele, nunca para sair. Nunca pediu para sair, nos primeiros anos por vergonha, nos seguintes por hábito, e por fim porque achava que não aguentaria estar lá fora sabendo que teria que voltar ao fim do dia ou da semana.
Pronto, já estava lá fora. Olhou em frente, tanta luz, tanto barulho, tanta gente diferente, tantas cores berrantes, carros a buzinar e sons que não entendia. Sentiu-se tonto, o que fazer agora, para onde ir? Tinha pensado tantas vezes ir comer um bom bitoque, beber uma imperial, fumar uma cigarrada numa esplanada ao pé do rio. Comprar um jornal, ir ao estádio ver o seu Benfica, ir às meninas do Cais do Sodré…
Deu meia volta e voltou para trás. Largou o saco no chão e gritou bem alto para o deixarem entrar.
Vinte e cinco anos de convivência diária com pessoas que não conhecia, que não queria conhecer, que conseguiu nunca conhecer. Nunca quis rever-se naquelas caras destruídas, imundas de psicoses mal resolvidas, de histórias sempre iguais e nunca as mesmas, de passados impuros que tentavam lavar com a mesma lixívia que usavam para as paredes, barata, sem nexo nem razão.
Olhou uma última vez para trás, enquanto pegava no saco gasto e usado. Ninguém o vinha buscar, não tinha ninguém nesta vida, os seus pecados antigos tinham-se certificado disso. Todo o mal que tinha feito tinha-o pago ali dentro, vinte e cinco anos ali dentro, na mesma cama, na mesma cela, sempre na mesma.
Abriram-se os pesados portões que o levariam dali para fora. Olhou para os seus pés, um em frente ao outro foi seguindo pelo caminho já percorrido tantas vezes por tanta gente, nunca por ele, nunca para sair. Nunca pediu para sair, nos primeiros anos por vergonha, nos seguintes por hábito, e por fim porque achava que não aguentaria estar lá fora sabendo que teria que voltar ao fim do dia ou da semana.
Pronto, já estava lá fora. Olhou em frente, tanta luz, tanto barulho, tanta gente diferente, tantas cores berrantes, carros a buzinar e sons que não entendia. Sentiu-se tonto, o que fazer agora, para onde ir? Tinha pensado tantas vezes ir comer um bom bitoque, beber uma imperial, fumar uma cigarrada numa esplanada ao pé do rio. Comprar um jornal, ir ao estádio ver o seu Benfica, ir às meninas do Cais do Sodré…
Deu meia volta e voltou para trás. Largou o saco no chão e gritou bem alto para o deixarem entrar.
little boxes - libertação
Abri a porta. Olhei à volta. Tudo arrumado em caixas e estantes e armários e arquivos e dossiers. Todas as coisas tinham um lugar certo, estava tudo centrado e enquadrado, não havia nada de viés nem fora do seu lugar.
Adequado, era o que aquilo era, extremamente adequado.
Respirei fundo, olhei para as minhas mãos, tão estranhas e vivas no meio de tanta ordem e silêncio. Senti uma enorme angústia apoderar-se delas, estavam dormentes, formigueiros iam subindo pelos meus braços.
Something’s got to give.
Nesse minuto percebi o que tinha de fazer.
Peguei na primeira moldura e atirei-a ao chão. O vidro não se partiu, pisei-o, certifiquei-me que estava bem partido, bem desfeito. A seguir foram as canecas, todas em estilhaços para a parede. A minha colecção de tantos anos em bocadinhos pequeninos, que giro parecem feitas de papel. Atirei todos os dossiers para o chão, rasguei todos os papéis, despejei todas as caixas, parti tudo o que podia ser partido, desfiz o que não consegui partir. Atirei a mesa ao chão, com um martelo parti a estante toda, a cadeira foi a voar pelas escadas.
Parei, olhei à volta. Já nada estava arrumado, não havia caixas nem estantes nem armários nem arquivos nem dossiers.
Respirei fundo. Agora posso começar.
Adequado, era o que aquilo era, extremamente adequado.
Respirei fundo, olhei para as minhas mãos, tão estranhas e vivas no meio de tanta ordem e silêncio. Senti uma enorme angústia apoderar-se delas, estavam dormentes, formigueiros iam subindo pelos meus braços.
Something’s got to give.
Nesse minuto percebi o que tinha de fazer.
Peguei na primeira moldura e atirei-a ao chão. O vidro não se partiu, pisei-o, certifiquei-me que estava bem partido, bem desfeito. A seguir foram as canecas, todas em estilhaços para a parede. A minha colecção de tantos anos em bocadinhos pequeninos, que giro parecem feitas de papel. Atirei todos os dossiers para o chão, rasguei todos os papéis, despejei todas as caixas, parti tudo o que podia ser partido, desfiz o que não consegui partir. Atirei a mesa ao chão, com um martelo parti a estante toda, a cadeira foi a voar pelas escadas.
Parei, olhei à volta. Já nada estava arrumado, não havia caixas nem estantes nem armários nem arquivos nem dossiers.
Respirei fundo. Agora posso começar.
profissão de fé
O meu nome é Mónica.
Sou escritora. Sempre fui.
Ser escritora é um cargo de responsabilidade acrescida. Colocamos a nossa alma nas mãos de terceiros para sermos julgados através do que escrevemos. Transpõe-se a fronteira da vergonha e tenta-se, muitas vezes em vão, fazer nascer sentimentos através da conjugação de palavras, com a mestria possível.
Pode-se cair no ridículo interior e público. Ao vermos espelhados as nossas vontades, sonhos, medos, intenções, passados e futuros numa folha de papel ou num ecrã de computador, mesmo que não tenhamos querido escrever uma “biografia”, revelamo-nos a nós mesmos. Com o perigo de gostarmos, ou não, do que vemos.
Por isso escrevo todos os dias. Aqui, para enfrentar de nariz empinado todos esses medos e perigos e ridículos e afins. Bear with me que há de haver dias ou noites em que nada fará sentido, ou será sensaborão, ou será até mesmo ridículo. Mas será qualquer coisa.
E isso já é imenso.
Sou escritora. Sempre fui.
Ser escritora é um cargo de responsabilidade acrescida. Colocamos a nossa alma nas mãos de terceiros para sermos julgados através do que escrevemos. Transpõe-se a fronteira da vergonha e tenta-se, muitas vezes em vão, fazer nascer sentimentos através da conjugação de palavras, com a mestria possível.
Pode-se cair no ridículo interior e público. Ao vermos espelhados as nossas vontades, sonhos, medos, intenções, passados e futuros numa folha de papel ou num ecrã de computador, mesmo que não tenhamos querido escrever uma “biografia”, revelamo-nos a nós mesmos. Com o perigo de gostarmos, ou não, do que vemos.
Por isso escrevo todos os dias. Aqui, para enfrentar de nariz empinado todos esses medos e perigos e ridículos e afins. Bear with me que há de haver dias ou noites em que nada fará sentido, ou será sensaborão, ou será até mesmo ridículo. Mas será qualquer coisa.
E isso já é imenso.
dessintonias
Ele chegou a casa com a mesma cara. Sem vida. Sem alegria. Sem a ver. Beijou-a como quem beija uma fotografia, sem alma. Refugiou-se no trabalho enquanto ela fugia para a televisão. A seguir falaram sobre o jantar. Ela fez o jantar de má vontade, talvez com estricnina na sopa ele reagisse. Podiam sempre discutir, ultimamente pareciam ser as únicas alturas em que falavam.
Deitaram-se, de costas voltadas. Ela ainda murmurou amo-te enquanto lhe tocava nas costas, sem saber se o sentia, se o queria sentir, ou se alguma vez o tinha sentido. Sabia que sentia falta do calor de estar apaixonada, de ser amada, de ser profundamente aceite. Queria só sentir-se menos gelada, menos despida. Menos só ao lado de alguém.
Ele chegou a casa. Casa que não parecia casa, não tinha amor, era cobrança em cada taco de madeira. Gritava-lhe ‘isto é a tua vida, habitua-te, esquece tudo o resto, isto é o que és’. Olhou para ela, não a viu. Viu apenas cobrança. Viu olhos que gritavam ama-me, por favor, aquece-me, e quis fugir. A ele ninguém o tinha aquecido, não tinha nada para dar, sobretudo a ela que na sua insegurança era o espelho dos seus medos.
Deitou-se, de costas para ela. Por favor não me toques, não me atraias para essa espiral de angústia que não me larga. Ouviu baixinho amo-te mas o que entendeu foi porque não me amas? Só queria dormir, esquecer e fugir para bem longe.
Deitaram-se, de costas voltadas. Ela ainda murmurou amo-te enquanto lhe tocava nas costas, sem saber se o sentia, se o queria sentir, ou se alguma vez o tinha sentido. Sabia que sentia falta do calor de estar apaixonada, de ser amada, de ser profundamente aceite. Queria só sentir-se menos gelada, menos despida. Menos só ao lado de alguém.
Ele chegou a casa. Casa que não parecia casa, não tinha amor, era cobrança em cada taco de madeira. Gritava-lhe ‘isto é a tua vida, habitua-te, esquece tudo o resto, isto é o que és’. Olhou para ela, não a viu. Viu apenas cobrança. Viu olhos que gritavam ama-me, por favor, aquece-me, e quis fugir. A ele ninguém o tinha aquecido, não tinha nada para dar, sobretudo a ela que na sua insegurança era o espelho dos seus medos.
Deitou-se, de costas para ela. Por favor não me toques, não me atraias para essa espiral de angústia que não me larga. Ouviu baixinho amo-te mas o que entendeu foi porque não me amas? Só queria dormir, esquecer e fugir para bem longe.
para começar
A angústia citadina não tem fim, sobe com os arranha céus que nos arranham as entranhas sem piedade, cresce como o asfalto que nos pavimenta as perspectivas, limita-nos nos becos e vielas onde nos procuramos sem saber o que buscamos e enfim, bloqueia-nos a consciência do nós no todo, até que não exista nada de nós e nos possamos re-criar de novo todas as manhãs, com o café a escaldar da nova máquina da moda e com os nossos mini objectivos alcançáveis com um murmúrio, um sopro do que podíamos ser e não somos porque subimos com os arranha céus, crescemos com o asfalto e perdemos-nos nos becos, bloqueados de consciência, sem constantes nem desvarios do que seríamos noutro sítio, noutro tempo, noutros olhares.
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