crónicas de um eléctrico amarelo

Sentou-se no primeiro banco vazio, o dos velhos e enjeitados.
Ajeitou a pasta, onde trazia os papéis para trabalhar em casa, os cálculos e balancetes e os livros de razão ou falta dela. Puxava os óculos para junto dos olhos, passava a mão nos cabelos húmidos de chuva e oleosidade constante. Fechava mais o sobretudo, o do seu Pai, remendado com orgulho pelas mãos tortas da sua mãe, que o meu filho doutor não há-de ter frio e tem que fazer boa figura no serviço.
Amanhã seria mais um dia igual a este. Hoje chegaria a casa, tarde, demasiado tarde, porque o caminho entre o escritório e a o lar “doce” lar demorava várias horas e meios de transporte diferentes. Havia dias em que acabava em pé todo o caminho, adormecendo agarrado a um metal solitário, enquanto segurava com os pés a pasta e com a mão o chapéu-de-chuva preto, que quando chovia tentava afastar das calças em esforços titânicos mas sempre inglórios. Um homem prevenido vale por dois, e por dois valia ele, nunca saía de casa sem o chapéu-de-chuva, era já motivo de risota dos colegas.
Jantaria qualquer coisa a correr que a mulher lhe deixara no microondas antes de dar a telenovela, depois de a beijar rapidamente na bochecha porque há muito lhe passara a vontade de a beijar como quando eram miúdos e namoravam nos jardins do bairro. Tentaria falar com o seu filho, único porque o dinheiro não deu para mais, mas a concorrência da playstation presente de Natal do ano passado era demasiado forte para um Pai contabilista e desactualizado.
Enquanto pensava no que o esperava em casa, neste vazio atulhado de bricabraques inúteis, sentiu-se sufocar por paredes invisíveis de bruscos cinzentos
Foi então que viu. Na entrada da porta do eléctrico estava um agente da polícia, fardado e de arma no coldre. Reparou que o coldre estava aberto, que nada o impediria de pegar na arma e de arrancar deste eléctrico a sua própria importância. Imaginou-se qual Clint Eastwood da sua meninice, que nunca fora de poesias, bradando a arma aos céus e exigindo respeito.
Mas respeito de quem, e porquê? O que tinha feito para merecer tal respeito? Tal como a sua mulher o relembrava diariamente, era um falhado, um zero, um nada. Um Pai ausente que não reconhecia o filho, um marido indiferente de uma mulher mal amada, um contabilista cinzento que confirmava em todos os minutos da sua existência velhos hábitos e clichés.
Lentamente levantou-se, pegou na pasta, no chapéu-de-chuva, carregou no botão encarnado para sair, de ombros pesados e cabeça baixa, pensando como tudo mudaria se ganhasse o euro milhões esta semana…

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