Saiu do serviço tarde para o que era habitual. Normalmente conseguia sair ao bater das cinco , mas como hoje era dia de greve tinha ficado para além da sua hora para ajudar o chefe. Não lhe interessavam as greves. Achava que isso era tudo obra de comunas, esses bandidos que não queriam era fazer nenhum. Por que outra razão é que as greves eram sempre à sexta-feira? Não, ele queria era trabalhar, para ter o seu dinheirinho certo ao fim do mês. Não arriscava perder este emprego, custara-lhe tanto chegar aqui.
Tinha começado a trabalhar aos 16 anos como varredor de ruas da capital, serviço duro e que o tinha feito mais solitário do que era antes, preso aos seus botões. Com esforço tinha conseguido acabar o liceu à noite, e rumado para um curso profissional de contabilidade, que lhe tinha aberto as portas de um serviço de finanças.
A partir daí os seus dias passaram a ser dominados por despachos, certificados, cadernetas, certidões, recibos, facturas, cartões, informações, declarações, coimas, contra ordenações e demais burocracias farpadas. Eram temas que dominava com a ligeireza das cabeças cinzentas, e sobre os quais não pensava em demasia, porque era assim mesmo, não havia em que pensar, apenas aplicar e cumprir, ou fazer cumprir.
Virgem por preguiça, ateu por convicção, vivia na casa que tinha sido dos seus Pais, há muito mortos de velhice ou cansaço, vá-se lá saber. O seu único consolo era a sopinha quente deixada pela Maria, vizinha de bons paladares que o ajudava nas lides domésticas.
Saiu do metro e caminhou até casa no seu passo miudinho de quem não tem preocupações mas também não tem alegrias. Imaginemo-lo de chapéu de feltro preto, numa Lisboa cinzenta de tempos idos.
Entrando em casa, foi saudado com gritos de alegria do seu irmão mais novo, que abraçou forte e ternamente. Viviam juntos desde sempre, era uma espécie de filho e não irmão, um ser eternamente dependente.
Era por ele que não se rebelava, que não saia do seu auto infligido casulo. Quem cuidaria do seu irmão mais novo se alguma coisa lhe acontecesse? Ninguém certamente, que ninguém tem amor suficiente para dar a estranhos.
Largou o casaco, agarrou o irmão mais novo pela mão que este lhe oferecia, e perguntou-lhe se já tinha lanchado, e se queria que ele lhe lesse uma história.
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