re-descobertas

Penteou os cabelos compridos com calma, como se o mundo se tivesse sentado a descansar. Agora não era preciso correr, já tinha corrido muito. Com cuidado desembaraçou o mar de prata que lhe escorria pelas costas, sem pensar nas horas ou nos mil afazeres com que habitualmente preenchia os seus dias.
Hoje talvez não os prendesse. Que glória esta demonstração viva do seu longo passado! Que ode às pessoas que tinha conhecido, reconhecido e perdido durante a sua vida! Cada reflexo branco era uma cicatriz que hoje lhe apetecia exibir com o orgulho de um veterano. Hoje não percebia o porquê da regra não escrita que as mulheres de bem deviam pintar os cabelos brancos. Que desonestidade lhe parecia, que fingimento narcisista, destinado a agradar a quem? A esconder o quê? Que vergonhas traziam estes fios brancos às suas portadoras?
Olhou-se ao espelho devagar, parando os olhos em cada ruga, em cada sinal, em cada mancha. De repente deixaram de lhe fazer sentido as toneladas de creme anti rugas, de esfoliantes, de protectores solares com que tinha presenteado a sua pele todos os dias da sua vida. Quanto tinha já gasto nestas tentativas de parar o tempo? Cada ruga era um sorriso, uma dor, um sentimento ali plantado na sua cara, baluarte de vida. Ao observar as suas rugas, sinais, manchas, lembrou-se dos seus pais, dos seus amigos, do seu primeiro amor, do seu último amor - o seu marido que ouvia cantar enquanto preparava o pequeno almoço - dos seus filhos, dos seus netos. Porque raio de carga de água tinha querido apagar estas rugas? Não tinha qualquer vontade de esquecer nenhum deles, nem sequer as dores passadas. Era tudo parte dela...
Ouviu a voz grave do seu marido a chamar por ela, olhou-se mais uma vez ao espelho, sorriu para si mesma enquanto murmurou um divertido parabéns.

Sem comentários:

Enviar um comentário